Onde Paul, Dylan e Sinatra se encontram

Paul Mc Cartney é uma espécie de Tchaikovsky da música pop: nem seus críticos mais implacáveis e enjoados, que atribuem todo o mérito da rebeldia dos Beatles nos anos 60 a John Lennon, negam a genialidade dele como melodista.

O próprio parceiro-mor, no momento de maior rivalidade entre os dois, à época que a banda implodiu sob o peso do ego de ambos e que eles se lançaram em carreiras solo, resmungou, na letra em que lhe perguntou “como você dorme?”, que “a única coisa que você fez foi ‘Yesterday’”. Uma injustiça clamorosa. Pois “Hey Jude”, que o ex-amigo escreveu para consolar o pequeno Sean, filho de John e Cynthia Powell, quando ele a deixou por Yoko Ono, é um dos maiores sucessos e uma notória obra-prima (música e letra primorosas) dos quatro fabulosos, é ou não é, cara-pálida?

zzzzsuporte2Agora, 45 anos depois desse conflito que não teve baixas e todos venceram, o mundo reverencia da forma mais adequada A arte de Paul McCartney, título de um álbum duplo produzido por Ralph Sall em que a Bulletproof (à prova de bala, hahaha!), selo da Sony Music, reuniu suas canções “cantadas pelos maiores artistas do mundo”. Menas, como diria certo prócer nosso! Para merecer este subtítulo, a obra precisaria ter incluído Mick Jagger, Keith Richards, Brian Ferry e alguns outros dinossauros do roque e rola. Mas o elenco que atua nas 34 faixas é, de fato, fora de série. E já demonstra por si só que o autor e intérprete de Liverpool está aí vivo e atual em todos os sentidos. Isso não acontece com o grande romântico russo, que até hoje é desaconselhado para diabéticos, porque as orquestrações toscas não reduzem a glicemia de divinas linhas melódicas, caso da Suíte quebra-nozes, por exemplo. Piotr Ilitch ainda não pode ostentar na jaqueta o “à prova de bala” de James Paul.

No CD, Dr. John empresta sua verve bêbada de New Orleans, berço do jazz, à cançoneta “Let ‘em in”, que nem parecia grande coisa na miríade estelar da obra do baixista dos Beatles. Paul Stanley e Gene Simmons, da banda americana Kiss, mostraram ao autor onde é que se esconde o rock pesado de “Venus and Mars/Rock Show”. Dion, egresso do rock de raiz e que lançou “The Wanderer”, vertida para o português por Erasmo Carlos sob o título de “Lobo mau’, sucesso do “mano” Roberto, carregou no sarcasmo no remake de “Drive my car”, sem ligar para o fato de que Lennon andou dando palpites na letra da canção gravada em Rubber Soul, quando os Beatles se preparavam para virar o pop pelo avesso com Sgt. Pepper’s lonely hearts club band, seu rito de passagem para a madureza. Astros como Billy Joel (em “Maybe I’m amazed” e “Live and let die’), Steve Miller (“Hey Jude”) e Cat Stevens, agora Yusuf, (em “The long and widing road”) não estavam nem aí por terem gravado covers de luxo dos hits com o beatle.

O maior destaque da coletânea é “Things we said today”, ingênua baladinha de amor adolescente do filhinho da mamãe de Liverpool, transformada numa descarga de catarro e cinismo na versão do velho descolado desembarcado das estepes geladas de Minnesota na folia cult do Village nova-iorquino no início dos 60. Robert Zimmerman, vulgo Bob Dylan, exerce na faixa a mesma função que lhe é atribuída de ter introduzido a maconha na vida dos Beatles no Hotel Delmonico em Nova York, em 1964, durante a primeira incursão dos cabeludos de Liverpool na América.

zzzzsuporte1O CD chegou às lojas um pouco antes do último lançamento de Dylan, Shadows in the night, que começa a ser vendido. Interessante será comparar o charme vintage da regravação do sucesso juvenil dos Beatles com as dez faixas em que o criador da revolucionária “Like a rolling stone” exibe técnica irrepreensível e voz limpa, sem que se perceba sinal algum de expectoração, ao recriar êxitos da carreira do maior cantor de standards americanos Frank Sinatra, de quem é fã. Ao tornar a rara composição de “a voz” “I’m a fool to want you” ainda mais pungente do que a original, Bob prova que não é só o maior letrista da música pop, mas também um intérprete capaz de celebrar o mais dotado de todos os colegas.

José Nêumanne é poeta, escritor e jornalista. 

Este texto foi originalmente publicado no Caderno 2 de O Estado de S. Paulo, em 16 de fevereiro de 2015)

Eu não conhecia o Nêumanne quando, em maio de 1981, Dylan fazia 40 anos e escrevi um perfil dele que saiu em duas páginas no Jornal da Tarde.  Lá pelo fim do texto, citei – com o devido crédito, é claro – uma frase que Nêumanne tinha escrito no Jornal do Brasil sobre o compositor.  O paraibano-paulista adorou ter sido citado por este mineiro-paulista. Mais tarde, viramos colegas no predião do Estadão na Marginal. 

Pedi a ele autorização para transcrever aqui o texto dele sobre Paul, Dylan e Sinatra. Mas também vou fazer meu texto sobre o disco Dylan canta Frank. Os dedinhos estão coçando.

Ah, sim. A frase de Nêumanne publicada no Jornal do Brasil que citei no meu texto no Jornal da Tarde é excelente mesmo: “O mínimo que se deve esperar de Bob Dylan é, como sempre, o inesperado.” (Sérgio Vaz)

 

 

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