Gosto do estrangeiro, do homem e da mulher sós, sem ninguém que lhes fale a língua. Gosto do francês de Aljezur, da implacável alemã, patroa do recepcionista que eu fui num hotel do Lobito, do zairense da Caparica, mais expatriado do que o Chewbacca do Star Wars.
O estrangeiro é o que escolheu carregar a nossa cruz, céu, terra e mar, a amargura que é a nossa incomunicável alegria. O português que anda pelas ruas do Porto ou Lisboa bem pode dizer “I’m a stranger here myself”, como se fosse o herói autocomplacente de Johnny Guitar. Português da treta, conversa de café. O estrangeiro não quer ser “stranger”, quer é vaguear as noites para ouvir o fado de Portugal, e nele e por ele, ser o nosso irmão gémeo. O estrangeiro é o que se entrega indefeso à descoberta. Quer descobrir-se a si mesmo em nós.
O estrangeiro não tem rede – ou tem, quando muito, pouca rede. Honra-nos com essa desarmante vulnerabilidade. Se quiséssemos, poderíamos matar o estrangeiro, bater-lhe, dar-lhe um tiro, estrangulá-lo. Só um cobarde o faria, porque o estrangeiro é o que se nos confia, o que nos dá o seu amor antes de saber se o vamos amar.
O estrangeiro é português porque os portugueses, no seu melhor, sempre foram estrangeiros. A um verdadeiro português nunca lhe bastou Portugal para ser o português que queria ser. O português que quer ser português vai ser Mendes Pinto no oceano Pacífico, Wenceslau no Japão, como o filmou Paulo Rocha. Vai ser, a ferro e fogo, Afonso de Albuquerque em Ormuz. Vai plantar café em Angola, bater chapa na Alemanha, ser porteira em Paris ou padeiro de Manaus a Santa Catarina. O português que tem ânsias de ser português quer mar e mar, quer ir sem saber se vai voltar.
Parece que Fernando Pessoa se cantou como o viajante que nunca saía do cais. Bastar-lhe o cais é, digo eu, uma forma de abstenção – que pena que ele tenha desistido de ser português. (E é mentira, porque o engenheiro Álvaro de Campos andou em bolandas de Glasgow a Londres, o latinista Ricardo Reis se baldeou para o Brasil, já para não falar de certos vestígios adolescentes de Durban.)
Esqueçam lá Bruno Ganz na Cidade Branca. Em Portugal, não há nada mais português do que o estrangeiro à porta da sua casa no Alentejo. A esse sim, apetece filmá-lo, mesmo com um ridículo chihuahua ao colo.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.