É preciso trair. O mais abnegado dos gestos não é o de quem fica para sempre amarrado à mesma rua, às mesmas fidelidades, aos mesmos amigos e crenças.
Podem cantar-me a virtuosa e inamovível coerência de Salazar ou Cunhal, esse juramento de granito aos mesmos princípios, essa inabalável firmeza perante terramotos e maremotos. Não me enternecem. Bem sei, é para o lado que eles dormem melhor: para os princípios de ferro é invisível e despiciendo o gesto individual.
Mas é dessa mudança, dessa traição, que nos falam dois filmes. Foi George Lucas quem primeiro me mostrou o valor ético da traição. Em American Graffiti (1973), a mais desembestada evocação nostálgica do espírito da small town do final dos anos 50, há quatro amigos que terminam o liceu e podem ir para a universidade. Aquilo parece o meu bairro, o vosso bairro: um mar de amor, família e amigos, a terna doçura das mesmas festas, um sopro juvenil poético que rescende a eternidade. Partir é sair do Paraíso. Nem é bem cortar laços, é cortar os pulsos, porque ali são tão unidos como os dedos de uma mão. E, um a um, tombando ao feitiço dessa irrepetível felicidade, desistem da universidade. Menos um, Richard Dreyfuss, o que, no começo do filme, parece ser o mais visceralmente ligado às encantadas rotinas. E é ele que trai, o único a partir. Vai, porque precisa de descobrir “essa deslumbrante e devastadora beleza” com a qual sonhou toda a sua juventude.
Outro magnífico traidor é Matt Damon. Em Good Will Hunting (1997) é um miúdo genial, inteligência assombrosa, nascido num meio operário. Matt Damon é o traidor relutante. Recusa a universidade. Para beber copos e engatar miúdas, só quer sair à noite com os amigos das obras e das oficinas. Nega a inteligência, em nome desse atávico amor operário. Até perceber que são os amigos, operários, pessoal da ferrugem, que querem que ele vá embora, os abandone, e seja o génio matemático que pode ser. E que, nesse sonho maior, realize o sonho deles. Querem, no sucesso dele, vingar o destino a que estão irremovivelmente amarrados. O olhar de Ben Affleck, o amigo das obras, ao descobrir que Matt Damon, por fim, partiu, é o mais belo olhar de resgate e redenção dos filmes americanos dos anos 90. Não é um olhar, é um comovido elogio da traição.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
American Graffiti no Brasil é Loucura de Verão.
Good Will Hunting é Gênio Indomável.
A traição sentida nos dois filmes citados é a mesma que vejo na canção “Morro Velho” de Milton Nascimento. Nela dois meninos brincam no latifúndio atrás de passarinhos, mas o filho do senhor vai embora estudar na cidade grande, ao partir tem olhos tristes, deixa o amigo na estação distante, promete voltar, quando o faz, já é outro, trouxe sua mulher para apresentar, traído o amigo já não brinca apenas trabalha. O tema descrito na cultura cinematográfica colonialista é o mesmo vivido nas colônias de África e Brasil, a traição dos jovens adolescentes à uma suposta igualdade.