Por um bom sorriso, minto com todos os dentes que tenho na boca. Não sou só eu: a esquerda derrete-se por um pensamento mágico, a direita para se exaltar precisa de uma orgulhosa e solitária epopeia. E eu preciso de Garson Kanin.
Kanin escreveu, filmou, fez o pino numa Hollywood de festas e piscinas, pernas a roçarem-se por baixo da mesa, Hollywood de muitas camas. Num livro, “Moviola”, mistura tão bem a ficção e os factos que, no fim, já só pode ser tudo verdade.
Na página 284, entra David O. Selznick. Vai filmar E Tudo o Vento Levou, já tem Clark Gable para herói, mas ainda não tem boneca para a sua Scarlett. Cabelo negro, olhos verdes, corpo de uma carne esplêndida e flexível, Scarlett O’ Hara é a razão de ser do livro e do filme. Num filme de guerra civil, de homens e canhões, de incêndios e campos pejados de mortos e feridos, o que o cinema quer é uma mulher que arda no desejo de ser desejada.
Selznick inventou uma festa. Convidou as potenciais Scarlett: Bette Davis, Katherine Hepburn, Carole Lombard, Paulette Godard, a exótica Tallulah Bankhead, Joan Crawford, mesmo uma loira bombástica como Jean Harlow, a decidida Jean Arthur. Não sabiam ao que iam – quem percebeu logo foi Irene, a mulher de Selznick, que recusou ir à festa e viajou para Palm Springs. A arguta Hepburn, também ninguém lhe pôs a vista em cima.
No salão de Selznick as mais belas mulheres do mundo desfilavam e perceberam que estavam a fazer de Scarlett – ou de starlets? As entradas eram amêijoas. Só não eram amêijoas à Bolhão Pato por ninguém ter avós portuguesas. Jean Arthur tinha um prato na mão e não comia. “Não gostas de amêijoas, Jean?”, perguntou-lhe Selznick. “Não gosto é de ti e muito menos da piada parva de nos juntares assim”, disse ela. Despejou-lhe o prato e o molho pela cabeça abaixo e foi partindo bibelots em direcção à saída. David empurrou-a, mas o marido dela acertou-lhe um murro nos óculos.
Já Joan Crawford arrastara Clark Gable para um canto, mostrando-lhe, boca a boca, que tinham de ser eles o par do filme. Carole Lombard, a mulher de Gable, veio com uma cadeira e não falhou a cabeça de Joan. Terá dito: “Chamem a polícia!”
O que se seguiu é inenarrável e é tudo verdade, até o grito de Selznick: “Uma coisa vos juro, Scarlett está nesta sala.” Quem mais jura, mais mente, e o grito de Selznick foi a única mentira dessa gloriosa e lendária noite.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.