Estava sentado com ar de turista na mesa de um restaurante colocada ao ar livre na praça da Catedral, em Havana.
A praça é uma espécie de pátio dos milagres. Está lá a velha cubana com um charuto na boca que cobra um dólar para ser fotografada por turistas. Um velho passista negro com a boina à la Che Guevara ensaia uma dança para as fotos. Solistas, duos e trios de música caribenha descansam na calçada esperando a sua vez de tocar “Guantanamera” ou “Iolanda” (jolánda, como pronunciam).
Vejo à distância um rapaz que olha com insistência para mim, volta o olho para a sua prancheta, e parece rabiscar qualquer coisa. Depois de rabiscar, volta a olhar pra mim. Tenho a impressão de que estou servindo de modelo para alguma coisa. Um agente da KGB cubana? Que nada.
Faço um sinal pra ele se aproximar. Ele chega, diz que se chama Carlos, e mostra o esboço da caricatura do meu rosto que está fazendo em troca dos trocados que eu quiser lhe dar.
Senta, Carlos. Almoça comigo. Tomamos um rum Añejo 7 anos cada um, e dividimos a posta de peixe que enche a travessa. Carlos tem um apetite de anteontem.
Falamos vagamente e distraidamente sobre a vida. Fica feliz ao saber que vim do “Bracil” (assim mesmo, com o s pronunciado como c). Todo cubano tem paixão pelo Bracil, pelas novelas, pelo futebol, pelas praias, por esse modo de ser muito parecido.
Carlos não deve ter ainda 30 anos. Sobrevive da arte de seu traço de retratista e da eventual generosidade dos turistas, que fazem o seu próprio preço para levar para casa a caricatura feita por ele.
Carlos, como todos os artistas da praça, paga uma vez por ano a sua licença ao município de Havana para exercer seu trabalho como autônomo. Mostra a sua taxa quitada e começa a discorrer sobre como é viver aqui. Não tem curso superior e nem projetos para cursar algum, diz que sua mulher sustenta um pequeno “paladar” (restaurante privado) de 4 mesas na mesma rua da Bodeguita del Medio, ali perto, e me convida para ir lá.
Olha para os lados, uma espécie de cacoete muito comum por lá, como se quisesse conferir se tem alguém ouvindo, e sussurra, em voz baixa, como uma confidência: “esto és una prisión”.
Não vamos nos alongar porque Carlos não é uma “persona” política nem, ao que ele mesmo saiba, um dissidente. É apenas um cubano. Vou até a casa dele, a 100 metros da praça, num prédio velho, em ruínas, como todos os de Havana Vieja. Subo dois lances de escada de pedra, suja, corroída, nessa espécie de habitação coletiva, e ele me apresenta a sua mulher, lidando com um fogão com panelas cheias de “moros y cristianos”- o arroz e feijão diário deles.
Uma família cubana típica, gentil, resignadamente alegre. Me despeço de Carlos e marco com ele um passeio para Varadero no domingo seguinte. Ele pede para que antes de ir embora lhe deixe algumas calças e camisas velhas que eu por acaso não use mais.
Em Varadero, para onde fomos num carro que eu aluguei e dirigi, Carlos sacia de novo a sua fome de anteontem, com um prato de camarão seguido de uma pizza (isso mesmo, essa estranha combinação). Voltamos, deixei o pacote de roupas com ele, nos despedimos com um cordial “hasta la vista”, com ele dizendo que sonha um dia poder conhecer o “Bracil”. Marcamos um encontro para quem sabe um dia.
Sabemos que na terça-feira alguns cubanos, como Reinaldo Escobar, marido de Yoani Sanchez, foram presos antes da manifestação de um novo movimento chamado #YoTambienExijo (Eu também exijo), e que o país está no aguardo que a mão estendida de Obama derrube os muros que cerceiam a liberdade de expressão na ilha há mais de 50 anos.
Meu amigo Carlos está esperando que abram as portas de sua gaiola para poder vir conhecer o “Bracil”.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 2/1/2015.