A letra de “Marina”, esse grande clássico da canção brasileira, é um horror.
Escrevo a frase e quase tremo por tê-la escrito. Como assim, apedrejar dessa maneira um Caymmi?
Sou fã apaixonado de Caymmi desde que me entendo por gente. Marina, minha cunhada mais velha, tinha o disco Caymmi e Seu Violão, o de 1959, e acho que foi nele que aprendi a amar as canções do mestre, desde que era bem garoto.
Mais tarde, fui aprendendo a gostar mais e mais. Aprendi com Tárik de Souza – e com as canções – que a música brasileira descende de três troncos básicos, fundamentais: Luiz Gonzaga, Dorival Caymmi e Noel Rosa.
Felizmente fui um jovem cercado por gente boa, e desde sempre conheci Gonzagão, Noel e Caymmi.
Gonzaga é Nordeste – a tristeza imensa da seca, a alegria imensa do forró. Noel é urbanóide, e portanto é complexo, é trágico e irônico e duro e seco – e às vezes até suave.
Caymmi não é um – é no mínimo três. Caymmi é as canções praieiras, as mais conhecidas de sua obra não imensa mas brilhante; é regionalista, como quase toda a arte brasileira era regionalista entre os anos 30 e 50; e é também pré-bossa nova, urbana, mas copacabanamente urbana, não zona-nortemente urbana como Noel. Nada contra Noel, pelamordeDeus, o maior gênio da canção brasileira – mas Noel era a Zona Norte, e Caymmi, morador da Ilha do Governador, antecipou a bossa nova, porque soube cantar o sábado em Copacabana, questionar quem inventou o amor.
Tive a oportunidade maravilhosa de escrever sobre a obra de Dorival quando ele fez 70 anos, e escrevi, modéstia à parte, um belo texto no Jornal da Tarde, em que tentava mostrar que Caymmi é ourives, daqueles que passam meses, anos, esculpindo uma única jóia.
A obra de Caymmi é pequena – em volume – se comparada à de outros grandes criadores. É do time ourives, o time de Paul Simon, ou, no cinema, de Milos Forman – não é do tipo prolífico, tipo Bob Dylan, ou, no cinema, Woody Allen. Um time não é melhor que outro. Os prolíficos são prolíficos, os ourives são ourives. O prolifico Dylan uma vez disse que se sentia diferente porque, nesta era de fibra de vidro, continuava procurando por uma gema.
Caymmi criou gemas perfeitas. Pérolas lapidadas ao extremo.
Mas, pelo menos uma vez na vida, pisou no tomate, pisou no tomateiro: a letra de “Marina” é uma porcaria. Um horror.
***
Aí vai a asneira, para quem não se lembra bem:
Marina, morena
Marina, você se pintou
Marina, você faça tudo
Mas faça um favor
Não pinte esse rosto que eu gosto
Que eu gosto e que é só meu
Marina, você já é bonita
Com o que deus lhe deu
Me aborreci, me zanguei
Já não posso falar
E quando eu me zango, Marina
Não sei perdoar
Eu já desculpei muita coisa
Você não arranjava outro igual
Desculpe, Marina, morena
Mas eu tô de mal
De mal com você.
***
Como assim, a moça não pode botar um batonzinho? Um rouge, um blush? Uma sombra nos olhos?
Como assim, ô machista feladaputa? Você não gosta e então a moça não pode botar uma corzinha no rosto? E aí você fica de mal, porque ela fica linda?
Quem você pensa que é, cara? Tá louco?
“Me aborreci, me zanguei, já não posso falar.” Esses correm o sério risco de ser os versos mais babacas da boa música brasileira. (Não levo em consideração coisas que estão abaixo de zero, pelamordeDeus.)
Parece coisa de veadão. Ai, ai, meus sais, fiquei aborrecido, zangado, já nem posso falar – a perua aí da moça tá muito é linda. Ai, pisa, pisa…
Hum… Este último parágrafo está um tanto antigo, que nem o machismo da letra de “Marina”. Mas, veja, é só uma brincadeira. Mas que “aborreci, me zanguei”, parece coisa de veado, lá isso parece.
(Veado é a palavra usada antigamente para debochar dos homens que exibiam – exageradamente – trejeitos femininos. Não vai no uso dela qualquer tipo de homofobia.)
É bom possível que ele não estivesse pensando nisso, mas, para mim, Chico Buarque – ele, como qualquer um de nós, fã de Caymmi desde sempre – deu um certo troco ao machista que repreende Marina por ter pintado o rosto em “Deixe a menina”. Embora feito e lançado bem no início dos anos 1980, ainda na ditadura, “Deixa a menina” é um samba alegre, bem humorado, pra cima, e faz uma gozação deliciosa dos machistas, dos caras que entendem que devem e podem controlar as namoradas, dizer o que elas podem ou não podem fazer:
Não é por estar na sua presença
Meu prezado rapaz
Mas você vai mal
Mas vai mal demais
São dez horas, o samba tá quente
Deixe a morena contente
Deixe a menina sambar em paz.
Cristina, a irmã de Chico, fez uma bela gravação de”Vai que depois eu vou”, do grande Geraldo Pereira, que, cantada por mulher, vira uma pérola anti-machista:
Tá louco chamando pra casa
Agora que o samba enfezou
Estou com a turma pra cabeça
Não aborreça, vai que depois eu vou
Gastei um dinheirão
Na sua fantasia, e você não sabe aproveitar
Ainda fica empatando
Não brinca, nem deixa a gente brincar.
***
Há registros de que Marina – a minha neta, não a namorada do narrador da música de Caymmi – tem machistas na sua árvore genealógica.
Coisas do passado. Tudo tem ficado melhor com o passar do tempo. O pai, por exemplo, é o anti-machismo em tudo por tudo, graças ao bom Deus, ou, para quem não acredita nele, ao bom Darwin.
Fico aqui pensando: quando Marina ouvir “Marina” com capacidade de compreender a boçalidade daquilo, o que pensará?
Vixe! Acho que vou ter trabalho em mostrar para Marina que Caymmi, apesar de ter composto “Marina”, é um gênio absoluto. Nessa letra aí, especificamente, errou, mas é gênio.
Vou tentar explicar para Marina que “Marina” é uma exceção na obra de Caymmi – e que a gente deve tentar compreender que nem mesmo os gênios sejam geniais durante todo o tempo.
Não sei se Marina concordará comigo. Mas vou tentar.
Até aqui, Marina tem se mostrado muito aberta ao diálogo.
Bem ao contrário do namorado da Marina da canção de letra babaca de Caymmi.
30/4/2015
Tudo começa por Caymme e termina em Dylan…mss o inverno no Leblon é quase glacial
:: Porcarias passam, belas canções ficam. Por Sérgio Vaz
Há canções que fazem sucesso extraordinário, tocam no rádio e nos bares e na TV sem parar, grudam na cabeça das pessoas como chiclete – e daí a pouco somem, desaparecem, são esquecidas. E há canções que ficam.
Marina a música, uma porcaria idiota e machista que ficou. Serve até como cançao de ninar.
Em defesa de Caymmi, devo lembrar que esse jeito aveadado de ser é reserva de mercado dos cantores baianos. Uso também o velho argumento de que não se deve olhar a arte do passado com os olhos de hoje. Do contrário, até Lobato vira racista. Caymmi é um produto do seu tempo. Esse tipo de ciúme machista era considerado grande manifestação de amor na época. E muito bem aceito e admirado pelas mulheres, igualmente machistas, que educavam seus filhos para serem machistas. Ninguém via nada de errado nisso. Pelo contrário: pobre do homem que não agisse assim. As mulheres de ontem e de hoje adoram a letra ciumenta de Marina. Acho que Noel e Gonzaga também não eram menos machistas. E aposto que o Miltinho – o nosso, não o das mulheres de trinta – já foi visto no Carnaval cantando inocentemente que a cor não pega, mulata.
Ah, se Caymmi soubesse: teria dado outro nome à sua musa, para não mexer com os brios do imparcial vovô da Marina.
Coisas do mundo minha nega, no passado coisas de veado, hoje é coisa de viado.
Gosto muito de te ler…leaozinho.
Ora, Miltinho, vai, vai…
Você anda lendo demais os textos sobre a Marina!
Queria ver se o João te arranjasse um/uma netinho/a!
Abração!
Sérgio
São coisas diferentes, Luiz Carlos, na minha opinião. Não há racismo no Lobato, assim como não há racismo no Lamartine. Falar de negros, de crioulos, de neguinha era, sim, mais livre, mais espontâneo, mais à vontade, sem essas cobranças absurdas, calhordas do politicamente correto.
A coisa do machismo é diferente. “Marina” é uma canção machista, assim como “Saudades da Amélia” é machista. Mas essas canções são exceções – não há tantas outras canções assim, dos anos 30 ou 40, machistas como “Marina”, em que o cara se considera dono da namorada. Nem aqui, nem que me lembre na Grande Música Americana nem no pouco que conheço da canção francesa dos 30 e 40.
Sou acostumado a ver tudo dentro de seu contexto. Ao falar de filmes no 50 Anos de Filmes – e falo muito de filmes dos anos 30 e 40 -, sempre fico atento ao contexto. “Marina” reflete mentalidade comum na sua época? Ah, reflete – é machista. Mas te desafio a listar cinco outras canções machistas do período – excluindo Lamartine, é claro, porque Lamartine é o machismo concentrado.
Abração!
Sérgio
Você já ouviu um LP da Jeanne Moreau com canções como Les Mensonges, J’Ai La Mémoire Qui Flanche, Rien n’ arrive plus, e outras maravilhas?
Les Mensonges é uma ode ao amante que mente porque enquanto ele mente é porque gosta dela… Machista é pouco. Mas é uma verdade muito verdadeira. E na voz da Moreau, uma beleza. MH