Olhamos para o colo gordo de Hitchcock e é tentador pensar que ele podia ter sentado uma ou outra Lolita nesse regalado conforto. É verdade, dava-se com Nabokov, pai de todas as Lolitas. Telefonavam-se e carteavam-se. Que se saiba, Nabokov nunca lhe pediu que adaptasse a sua Lolita ao cinema.
Hitchcock pediu. Em 1964, pediu a Nabokov que escrevesse o guião de duas ideias que lhe vieram à cabeça. Uma era puro artesanato hitchcockiano. Era a história de uma órfã que saía de anos de internato num convento suíço para vir viver com o pai viúvo, no hotel de que ele era director, em Londres. A prendada jovem suíça descobre que o staff do hotel é constituído por irmãos do pai. Numa das suítes, vive uma misteriosa avó, deus ex-machina de um esquema sinistro de que o hotel faz parte. Hitch queria fazer dos bastidores do hotel de família o que já fizera das traseiras dos prédios da suprema obra-prima que é Rear Window. Não tinha tempo, disse Nabokov.
À segunda ideia, Nabokov pretextou ignorância. Hitchcock começou a conversa por uma mentira gentil: seria uma estreia em cinema ou literatura. O inglês pediu ao russo que imaginasse um cientista americano de ascendência alemã que ia de visita à velha família, do lado de lá da Cortina de Ferro (para os nascidos depois de 89, ver Wikipédia). O cientista, ligado a projectos sensíveis, namora uma bela americana. E é a essa mulher apaixonada que o FBI pede que vigie o noivo suspeito. Irá passar segredos aos comunistas, desertar para Moscovo? Ou tem uma missão clandestina dos americanos?
Trocados os comunistas pelos nazis, a ideia rima, afinal, com outro Hitchcock. Rio de Janeiro em fundo e o urânio para a bomba atómica como desculpa, Cary Grant e Ingrid Bergman, apaixonadíssimos e divididos, vivem uma história parecida em Notorious. Notorious era um filme de que Nabokov nada sabia, como não sabia nada dos métodos da secreta americana. Conhecia melhor a secreta soviética e até sugeriu que se fizesse o filme de um russo desertor. Mas Hitch ferrou os dentes na ideia e fez, com Paul Newman e Julie Andrews, em 1966, a Cortina Rasgada.
Por mais tentador que fosse sentar Lolita ao colo, Hitch preferiu mostrar o que nunca se vira, um homem com a Cortina de Ferro ao colo. Quem tem um colo gordo senta nele o que quer.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Rear Window é Janela Indsicreta. Notorious é Interlúdio.
Falando em Wikipédia eles estão precisando de gás para sobrevida.
Pingue lá uns euros.