O escritor Jack Kerouac tinha uma cara suficientemente boa para cinema. Bem podia ter sido o que Montgomery Clift sofridamente foi em From Here to Eternity. E, não tivesse já morrido, até podia ser a cara de um dos recrutas de Stanley Kubrick em Full Metal Jacket. Tinha uma bela cara de homem, maçãs do rosto coradas a audácia e dúvidas.
Escreveu On the Road, bandeira geracional, livro que é uma corrente ininterrupta de incidentes, transgressões e nomadismo. Kerouac metia-se em drogas e, como ele diria, alguma lúdica paneleiragem. Sobre sexo tinha vistas e um corpo largos: casou com três mulheres, apaixonou-se por uma prostituta, dormiu com uns poucos rapazes e ajudou a atirar ao rio o corpo de outro, que um amigo, por razões de calças abaixo, calças acima, assassinara. Mais politicamente incorrecto não podia ser. Era católico e detestava Marx e Freud. Há a lenda de que foi ver as audições anti-comunistas do meningogástrico senador McCarthy e se sentou na sala a fumar um disfarçado charro – de uma cajadada insultava assim os coelhos e o caçador.
Kerouac gostava de Marlon Brando. Não tinha era o telefone dele. Escreveu-lhe uma carta. Vinha pedir-lhe, de joelhos, que transformasse On the Road num filme. Na carta, Kerouac antecipava a liberdade das imagens – um carro sempre a abrir, planícies, vales e montanhas, estradas a desfilar. Brando a fazer de Dean e ele mesmo, Kerouac, a fazer de Sal, os dois amigos que, no livro e na vida, tinham ido pela América fora. Só era preciso que Brando entrasse com a massa e comprasse os direitos que Hollywood andaria a cheirar.
Havia um ligeiro aroma a dólares na carta de Kerouac. Confidenciava a Brando que via o filme como o passaporte para uma independência financeira que lhe permitisse passar o resto da vida a escrever – presume-se que a beber, charrar e dar algum desassossego ao corpo também. Foi isso que encanitou Brando? Ou terá sido a forma como Kerouac se propunha influenciar a realização, fazendo um On the Road espontâneo, com a naturalidade dos filmes franceses dos anos 30? Kerouac desafiava Brando, no final da década de 50, a redesenhar o cinema americano, inventando o que viria a ser o espírito da nouvelle vague.
Perdida, em Hollywood, há uma carta a Brando que nunca foi respondida.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
From Here to Eternity no Brasil é A Um Passo da Eternidade.
Full Metal Jacket no Brasil é Nascido para Matar.