O predador que há, ou havia, em Jack Nicholson tem desculpa, estimada leitora. Já viu, se um dia descobrisse, como ele, que a tinham enganado sobre o seu nascimento? A sua mãe era, afinal, a que pensava ser sua irmã e a querida mãe muito amada era, na verdade, sua avó.
Aconteceu a Jack Nicholson, ainda o Correio da Manhã não existia. As mulheres que me desculpem, mas um tipo que passa por um vendaval destes tem direito a que as placas tectónicas emocionais lhe oscilem com mais turbulência do que as da falha de Santo André que causam os terramotos na Califórnia.
Anjelica Huston podia ter-me contado essa história quando a entrevistei em San Sebastian, há 25 anos, ainda ela estava de casa e pucarinho com Nicholson. Mas nada. Altíssima, lá de cima, foi sorrisos e ademanes para o apolíneo metro e oitenta gay do meu fotógrafo, saudoso amigo Guillermo que o cabrão do VIH me roubou, e de uma completa indiferença para a rasteira heterossexualidade do meu metro e sessenta e quatro. Convenhamos, ao tempo, a passar por uma fase de ensimesmamento intelectual que aterrorizaria até os vetustos críticos do cultíssimo “Ypsilon”, eu não fazia as perguntas certas.
Mas Anjelica ainda me disse, off the record, o que escreveu nas recentes memórias. Nas filmagens de Chinatown, o pai Huston estava à mesa com Roman Polanski, Faye Dunaway e uma cambada de técnicos. Chega Nicholson, que era o protagonista. Estava quase a sentar-se e o pai Huston diz-lhe: “Então és tu que andas a comer a minha filha?” Um parêntesis: se é exagero meu, ensinem-me a traduzir o “screwing” que saiu da boca de Huston para fora!
“Então és tu que andas a dormir com a minha filha?” e o rabo de Nicholson parou, aturdido, a um palmo da cadeira. “Sento-me, não me sento?” era o pensamento, tipo flash, que ia e vinha do cérebro de Nicholson ao seu suspenso posterior. Até o ameno sol da Califórnia fechou um olho, deixando o outro aberto para ver como se desamarrava a latente e patente rivalidade masculina. Esta eternidade não demorou um segundo e a gargalhada de Huston abençoou o desvario que, nessas primícias, iria pela cama, lençóis e travesseiros da casa de Nicholson em Mulholand Drive.
Não é que não tenha havido outras camas à mistura, mas a bênção de John valeu a Anjelica e Jack 17 anos do melhor que se alberga na palavra “amor”.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.