Uma jovem leitora perguntou e eu respondo: o que nos empurra para a morte é a mudança, a mudança que já não precisa de nós. O passado, todo esse mundo maravilhoso em que vivemos e aprendemos, deixou de interessar aos mundos que vieram a seguir a nós.
Em 1973, a estudar em Lisboa, vindo de Luanda, fui até à Opinião, ao pé da Cervejaria Trindade. Queria comprar elepês vanguardistas com o dinheiro fresco do já previsível estertor do colonialismo. Comprei: o Grand Wazoo do Frank Zappa; outro do John Cage, concerto para piano preparado; e do Chico e Caetano um delicioso juntos e ao vivo onde, além de navegarem o que era preciso, cantavam uma canção bandeira “eu como, eu como, eu como … você”.
Mas, jovem leitora, você não está entendendo nada do que eu digo? Não, não está e é mesmo aí que começa o grand wazoo, esse empurrãozinho para uma morte que apetece abraçar. Quando comprei os três elepês, o cultíssimo vendedor (amava-se o que se vendia) olhou-me de viés e disse: “Que escolha mais ecléctica.” Gastei cem escudos salazaristas e foi como se tivesse feito, com três vinis, um ano de psicanálise. Ele sabia o que estava a vender e topou quem estava a comprar.
Ecléctico, hoje como ontem, vou comprar coisas e é como se me saísse da boca um dialecto de Pago Pago. Um tipo quer trocar uma palavra sobre a abjecta lucidez de Lautréamont, erguer a esmagadora cruz de Matthias Grünewald, perguntar se faz sentido a nostálgica resignação de Spencer Tracy no Last Hurrah do Ford, e ergue-se um pináculo de silêncio de alto lá com ele. Quem sabe do que estamos a falar já tem uma conta calada na farmácia e a agenda preenchida com as tomas dos comprimidos. Ninguém de esplêndida pele jovem reconhece aquilo de que gostamos: perdeu-se a ideia de História? A turbulenta organização cacofónica de um Zappa não voltará a ser ouvida. O eco de um verso de Villon que, séculos depois, reverbera no Weekend do Godard não faz a primeira página de nenhum jornal.
A rua passa por mim e, das paredes como das bocas, ouço queixas, vitimização, mil direitos atropelados. Muita cultura da queixa, tão pouca história! O que nos empurra para a morte é já só nos confessarmos às paredes. Se tem de ser assim? Antes assim do que a comprimidos e algálias, antes na solitária rua do que no climatizado hospital.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
A foto é de O Último Hurrah, de John Ford.