O sol quente, tão quente quanto no verão, fazia estalar as sementes de mamona espalhadas no terreirão. E era inverno. Chovera quase toda a noite, a estrada era uma faixa pontilhada de poças multiformes em todo o estirão, até onde a vista alcançava. Na jaqueira que dava sombra em que a gente se protegia, as cigarras afinavam uma orquestra de zumbidos, som que eu não ouvia há muitos anos. Afora isso, o silêncio da calmaria era entrecortado pela algazarra dos papagaios que passavam aos bandos ou pelos sabiás que cantavam num pomar qualquer de fundo de quintal.
A porca correu de um lado para o outro da estrada, chamando os bacuris. Fui contando: três, cinco, nove. Mais um pouco e um malhadinho apressou-se, saindo de uma moita de capim na direção da mãe. Dez.
A preguiça batia no embalo das redes que seu Lazinho armara pra gente poder esticar os ossos à espera do avião. Um olho no céu e outro no copo estacionado sobre um toco de maçaranduba que servia de mesa. Dedos sem pressa, eu roçava a borda com carinho, saboreando tragos bem tragados da cachaça temperada com a casca da imburana, gostinho amargo que descia redondo, esquentando por dentro esfriando por fora. Um prazerão de vida, esse. Gozo de poucos, encontrado num cafundó de mundo chamado Brasil, bem na linha do Equador, 500 longe de Manaus, 340 longe de Boa Vista. São quilômetros e mais quilômetros de mato e chão, presente de Deus esquecido pelos homens lá do Planalto.
Naquela paz de fim de manhã de sábado que se arrastava pachorrenta, algumas nuvens se iam daqui pra ali e dali pra cá, o homem amorenado deixou a casinha pequenina de madeira, bem cuidada. Gosto de gente que sabe morar, mesmo em casa pequena, pobre, de caiação recente, de antes do inverno. Afastou o portãozinho que guardava a entrada de um jardinzinho de onze horas, roseira crioula, margaridas e buganvílias de várias cores. Veio chegando na mansidão dos passos, sem pressa, e sem cerimônia e numa intimidade que não se pede, se pega, foi chamando logo um copo da mesma cachaça de imburana e se pôs a prosear. De graça, sem receios.
— Seu moço é de longe, pois não?
— Sou sim, senhor. Mas já ando lá pela Boa Vista, há mais de três anos.
— A gente nunca se viu por aqui, pois não?
— Não senhor, que no Martins Pereira esta é a primeira parada que faço. Coisas do ofício.
E, no arrasto do papo — “Uma de imburana, seu Lazinho“ —, um trago mais, outra roçada carinhosa de dedo na borda do copo, olhar no céu buscando o avião a tempo de almoçar em casa. Mas a fome já ia batendo, a gente querendo saber se o avião vinha ou não. Se não vinha, onde e o que comer?
Caboclo tem coração aberto, descobre fácil a fome do outro.
— Seu moço, a mulher tá com um guisado de porcão no fogo. Carne fresca, caçado recente. É só chegar. Faço gosto.
— Bom, patrão, se o avião não chegar na hora prometida e se não for atrapalho, desfeita a gente não faz.
Não sou muito chegado a comer fora de casa, principalmente porque porco do mato na panela dos outros pode não ser a melhor pedida. Vai que o tempero seja daqueles que, junto com a carne selvagem, destemperam a barriga de visita, principalmente a de um paulista de estômago fracote como eu.
Olhei, assuntei, medi os riscos. Caramba! A imburana acariciava as entranhas, fazendo aumentar a fome. Mas o diabo é que tanto tempo longe da comida simples do campo me fez negacear, com receio de uma surpresa por causa dos temperos da dona da casa e porque as consequências dessas surpresas nem sempre são agradáveis, me pus com um pé atrás. Bom mesmo era aguentar e torcer para que o avião chegasse a tempo de me levar para o almoço lá em casa.
No que levei o copo à boca o rangido da janela desviou minha atenção. Nem era pra botar olhar naquilo, pois ele seria, como foi, a causa de um pensamento pecaminoso. Mas a moça jogou sobre os ombros os cabelos longos, pretos, alumiados pela luz do sol, enfeitando um rosto de beleza simples, como simples é a beleza da cabocla, e tal qual uma Gioconda emoldurada pelo batente, com voz mansa avisou;
— Pai, a mãe tá chamando pro almoço.
E lá ficou, sorriso fácil nos lábios bem feitos, carnudos, mais parecendo gomos de poncã. E eu cá, com cara de quem nunca viu.
Não sei se foi a imburana. Mas vinha ou não avião, acabou a preguiça. Levantei-me e lá fui com seu Leônidas, o pai. Com tempero ou sem, aquilo não era um almoço, era um banquete, pois não? O avião que esperasse. Lá naquele cafundó de mundo chamado Brasil, numa pequena vila de nome Martins Pereira, o olhar na moça valia qualquer sacrifício. Até mesmo um guisado de porcão.
Plínio Vicente publica semanalmente suas crônicas no Jornal de Roraima.
Presente de Deus esquecido pelos homens lá do Planalto, ainda bem.