Ser pé-de-cana é direito de todo cidadão

Roraimense é pé-de-cana como qualquer brasileiro que goste de uma abrideira, aca, aço, a do ó, água-benta, água-bruta, água de briga, água de cana, água que gato não bebe, água que passarinho não bebe, aguardente, aguarrás, águas de setembro, alpista, aninha, arrebenta-peito, assovio de cobra, azougue, azuladinha, azulzinha, bagaceira, baronesa, bicha, bico, birita, boa, borbulhante, boresca, branca, branquinha, brasa, brasileira…

caiana, cagibrina ou canjebrina, calibrina, cambraia, cana, cândida, canguara, canha, caninha, canjica, capote de pobre, catuta, caxaramba, caxiri, caxirim, cobreira, corta-bainha, cotreia, cumbe, cumulaia, danada, delas-frias, dengosa, desmancha-samba, dindinha, dona-branca, ela, elixir, engasga-gato, espírito, esquenta por dentro, filha de senhor de engenho, fruta, gás, girgolina, goró, gororoba, gramática, guampa, homeopatia, imaculada, já-começa, januária, jeribita ou jurubita, jinjibirra, junça, jura, legume, limpa, lindinha, lisa, maçangana, malunga, malvada, mamãe de aluana ou mamãe de aruana, mamãe de luana, mamãe de luanda, mamãe-sacode, mandureba ou mundureba, marafo, maria-branca, marvada, mata-bicho, meu-consolo, minduba, miscorete, moça-branca, monjopina, montuava, morrão, morretiana, não sei quê, óleo, orotanje, otim, panete, parati, patrícia, perigosa, pevide, piloia, pinga, piribita, prego, porongo, pura, purinha, quebra-goela, quebra-munheca, rama, remédio, restilo, retrós, roxo-forte, samba, sete-virtudes, sinhaninha, sinhazinha, sipia, siúba, sumo da cana, suor de alambique, supupara, tafiá, teimosa, terebintina, tira-teima, tiúba, tome-juízo, três-martelos, uca, veneno, xinapre e zuninga. Para os incrédulos um aviso: todos esses nomes estão lá no Aurélio.

Todavia, o roraimense corre o risco de não poder fabricar a sua própria água mardita. Cana tem e de muitas variedades, umas trazidas para o extremo-norte da Amazônia ainda no começo da colonização, outras do Nordeste pelas mãos dos migrantes cabeças-chatas. As variedades mais antigas, como a caiena ou cana-caiana, de alto terror de sacarose, vieram com os invasores, principalmente os holandeses, trazidas das Antilhas, onde, dizem, está o melhor rum do mundo, aquele que já era famoso nos tempos dos piratas da perna de pau.

Os portugueses que ocuparam o vale do Rio Branco no século XVIII trouxeram as primeiras cabeças de gado e as primeiras mudas de cana, que plantaram na Fazenda Real de São Marcos, hoje terra indígena dos wapixana e macuxi.

Na era do milagre econômico, os governos militares forçaram a ocupação da região por agricultores, dentro do tal “Brasil: integrar para não entregar”, uma onda de xenofobismo que varou duas décadas. Roraima ganhou vários assentamentos, entre eles Jatapu e Anauá, que o presidente do Incra, Paulo Yokota, dizia ser o melhor e mais moderno modelo de produção agrária e iria garantir o futuro de milhares de famílias. Foram essas pessoas, que viviam nos bolsões de miséria das grandes metrópoles, catadas sem nenhum critério, que vieram para cá e trouxeram na trouxa mudas de cana-de-açúcar. Para fazer açúcar, rapadura e melaço e, quando desse, uma cachacinha, por que não?

Os assentamentos do japa foram um fracasso. Tanto é que os lotes de 100 ha foram sendo vendidos, vendidos e hoje, aglomerados, formam grandes fazendas de gado no sul de Roraima, em área antes ocupada por uma grande floresta e onde hoje pontilham enormes esqueletos de majestosas castanheiras, copiúbas e maçarandubas. Mas a cana ficou e abastece os garapeiros das sedes dos 15 municípios do Estado.

Agora, se for para aplicar a lei ao pé da letra, esses canaviais domésticos vão desaparecer e quem quiser cachaça, garapa, rapadura e melaço vai ter que importar. A cachaça até que tem bons substitutos, que nos chegam pelas fronteiras da Venezuela e da Guiana a preços até que bem atraentes se formos comparar com o litro da 51. Já aparecem por aqui, com bastante frequência, Bacardi (Porto Rico), Ron Rico (Porto Rico), Mount Gay (Barbados), Matusalém e Havana Club (Cuba), Sea Wynde (Jamaica), Angostura 1824 (Trinidade e Tobago), Appleton (Jamaica), British Royal Navy Imperial (Ilhas Virgens), Santa Teresa, Diplomático e Cabo Blanco (Venezuela) e Capitan Grant (Guiana). Não acreditam? Venha tirar a dúvida nas lojas de importados que hoje proliferam na Área de Livre Comércio de Boa Vista.

Se a gente já não pode comprar gasolina da Venezuela a R$ 0,11 o litro; whisky escocês 12 anos na Guiana a R$ 35,00 a garrafa, agora corremos o risco de buscar melaço em Alagoas, pinga de Cabreúva e rapadura das Minas Gerais. Porque cana não vai ter. Além de proibir de se plantar em Roraima, o governo pode até mesmo mandar arrancar o que já tem.

Um absurdo, pois cá pra mim, esta parte que aqui chamamos de savana, campos gerais e lavrado, nada tem a ver com o bioma amazônico. São, por baixo, por baixo, 40 mil km2 de solo arenoso, pH de 2,5%, habitado por caimbezeiros, cupinzeiros e capim fura-buxo. Se não plantar cana vai plantar o quê?

O autor é jornalista em Roraima

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