Eu acho exactamente o contrário. Não sei se importa alguma coisa saber-se do que é que estamos a falar. Seja, então, de Meryl Streep. Se disserem que Meryl Streep, de Kramer vs Kramer a The Bridges of Madison County, faz sempre de Meryl Streep, eu discordo.
A minha convicção não é teórica – nunca li um livro sobre direcção de actores e faltei às aulas com a Stella Adler. Sei é que quando começo a ver The Deer Hunter ou Out of Africa, digo “olha, é com a Meryl Streep”, mas quando o filme acaba já só tenho a personagem, a Linda que De Niro mal sabe amar, a Karen Blixen na sua solidão queniana.
Nora Ephron escreveu o guião de Silkwood e Heartburn, que Streep protagonizou. Ficaram amigas. Um dia, Ephron disse com graça a verdade. Em vez de traços dinamarqueses ou polacos, que, blá-blá-blá, os críticos viam nas personagens da actriz, para Ephron, “o verdeiro truque de Meryl Streep foi ela ter-me representado a mim. Recomendo vivamente que tenham a Meryl Streep a fazer de vós”.
A perspectiva é aliciante e assustadora, confessa Ephron. Meryl Streep é capaz de fazer de nós, mais bem do que nós próprios. Se fôssemos com ela a um casting para fazermos de nós, perderíamos para ela. Pior, num dia mau, Nora Ephron chamou Meryl e pediu-lhe que a substituísse durante todo o dia – substituí-la na vida! – Meryl foi tão extraordinariamente boa que ninguém notou que nesse dia Nora não era Nora.
Se o segredo de Meryl Streep é ser cada um de nós – vá lá, das mulheres que ela tenha à mão –, que reserva de identidade é que nos sobra enquanto comuns seres humanos? Sermos imbatíveis a fazer de nós próprios é um título de glória que pode, afinal, ser usurpado.
Ora eu, que já sou um bocadinho inepto a fazer de mim mesmo, fiz o breve exercício de me sujeitar à receita de Ephron. Senti-me humilhado. O John Cazale, aquele irmão que o Pacino manda matar no segundo The Godfather, faria melhor de mim do que eu. Talvez por o Cazale ter sido marido da Streep, consola-me a Nora. Mas o Walter Brennan do Rio Bravo não era casado com ninguém e ria nesse filme o meu riso casquinado como nunca eu o rirei.
Esta ideia de que temos uma vida e essa vida é só um mau guião, a que qualquer secundário de Hollywood dará outro brilho, desestima-me muito. Que depressão bergmaniana. Não sei se chego ao Natal.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.