Deixem lá agora Orson Welles e prestem atenção a Joe Breen. Filho de catolicíssimos irlandeses, educado numa boa escola católica de Filadélfia, chegou a ser um inócuo repórter, funcionário público até. Mas não foi isso, nem ter-se casado com a namoradinha da escola, a quem fez seis lindos filhos, que o fez passar à história. Em 1934, Hays, o homem que deu o nome ao infame código com as regras do que se podia mostrar num filme, contratou Breen, já então um influente “católico irlandês dos rijos”, para número dois do organismo que, com o acordo da indústria de cinema, censurava os filmes.
Joseph Ignatius Breen foi como todos nós. Ou seja, disse uma coisa e o seu contrário. Há declarações dele a afirmar que Hollywood era um pântano de bebedeira e deboche, e tem ecuménicas declarações a favor dos judeus que contrariam um insidioso anti-semitismo inicial. Quando se reformou, a Academia deu-lhe um Oscar honorário.
Voltemos agora a Orson Welles. Esse imenso demiurgo tinha acabado de filmar Citizen Kane. E já toda a gente sabia que Citizen Kane era, mutatis mutandis, a história de William Randolph Hearst, o dono da maior rede de jornais da América, podre de rico, podre de poder.
Não era a história que Hearst queria ver contada. Welles e a sua produtora, a RKO, a indústria cinematográfica toda, levaram com os canhões de Hearst em cima. E já há uns bons anos que se sabe que a indústria vergou. Toda a gente vergou, deixando Welles isolado. Os patrões do cinema renderam-se ao patrão dos jornais e aceitaram destruir o negativo. Queimá-lo, reduzindo-o a cinzas, pareceu uma boa ideia.
Faltava só o visionamento e o acordo de Breen. Welles, que tinha lido o primeiro parágrafo desta crónica, foi a uma loja de artigos religiosos e comprou um rosário. Meteu-o no bolso. Quando chegou à sala onde Breen ia ver o filme, cumprimentou-o e, num gesto piedoso e teatral, fez com que o rosário lhe caísse do bolso para o chão. Apanhou-o. Talvez o tenha beijado à frente dos olhos já humedecidos de Breen, invento eu.
O resto é História. Nossa Senhora e Breen aprovaram o filme. E Citizen Kane continua hoje a valer a doçura de uma ave-maria, a esperança de uma salve-rainha.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Mais um filme do Manuel. O casamento de Welles com Nossa Senhora é uma cena digna de ser filmada.
Valha-me Nossa Senhora!
Além do Cidadão Kane é um documentário produzido pela BBC de Londres –
proibido no Brasil desde a estréia, em 1993, por decisão judicial …
William Randolph Hearst e Roberto Marinho se equivalem.
http://www.youtube.com/watch?v=049U7TjOjSA