Fui um libertário. Não era só pôr flores na cabeça como vinha nas fotografias autorizadas de Woodstock. Despi-me, como ainda não sabíamos que se tinham despido em Woodstock, para irmos, boys and girls, tomar banho nus e de meia-noite, mais ou menos por ali onde agora José Eduardo dos Santos tem o seu Futungo. Terei sido um libertino? Essa agora! Era uma nudez inocente, quebra colectiva de pudor que a ameaça da frígida Guerra Atómica entre o Mundo Livre e a Cortina de Ferro mais autorizava. Uma ou outra pica de liamba exaltava alguns e engasgava-me a mim e a generosa ideia de amor livre, de que quis ser um apóstolo na minha rua, esbarrou, murcha, na virginal resistência das filhas dos vizinhos – ninguém é profeta na sua terra.
Esperávamos pela midnight hour, como Wilson Pickett a cantou, corpo a torcer-se, voz densa a rasgar por entre saxes e trompetes. Mas o que sonhávamos parecia-se muito mais com o “Try a little tenderness”, tal qual o cantam The Commitments, a banda que dá nome ao meu soul music movie preferido.
É certo que eu devia jurar pelo Easy Rider de Dennis Hopper. Vi-o, na estreia, no cinema Avis, que depois se chamaria Karl Marx. Vi-o e devo-lhe, ainda hoje, ter como uma das minhas favoritas rock songs o “The Pusher”, dos Steppenwolf. Entendamo-nos: uma canção que nos mostra o que é ter dois caixões nos olhos é um aviso sério para o raio da vida que se quer ter.
Easy Rider tem tudo a favor mas, mesmo tendo tudo contra, The Commitments é o meu rock ‘n roll filme do coração. Apesar de ser realizado por Alan Parker, autor do abominável The Wall; apesar de ser mais soul que rock, o que bate certo com a minha mulatíssima vivência; apesar de a banda ser irlandesa e eu, de celta, nem um pingo.
A fusão era o caldo do meu bairro. Os Cunhas, selecto e mulato conjunto de cabaret, moravam no vizinho Largo Camilo Pessanha. Na minha rua ensaiavam os africaníssimos Ngoleiros do Ritmo. Eram os mais velhos. A minha geração queria, como no The Commitments, ter na guitarra o fogo no cu de um Hendrix, de um Santana, ter a voz rouca e vagabunda de David Clayton Thomas. Eu, voz pífia, os dedos a quererem mais rondeurs do que cordas de guitarra, nem para manager tive jeito. Sobrava-me a meia-noite e o nu banho de mar, com gritos de Kerouac e Herberto Helder contra o tonto homem unidimensional.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Um libertino em busca de liberdade.