Myltainho não era propriamente um ser humano: era mais uma espécie de lenda.
Embora fosse mais novo que eles, era uma lenda assim como Ewaldo Dantas Ferreira, como Paulo Francis, como Alberto Dines, como Samuel Weiner. Isso, é claro, para mim – mas acredito que também para muita gente da minha geração, que começou no jornalismo em 1970, por aí.
Quando cheguei ao Jornal da Tarde, aos 20 anos, em julho de 1970, a redação tinha muitos nomes que para mim já eram um tanto lendários: Rolf Kuntz, Percival de Souza, Antônio Carlos Fon, Rogério Sganzerla, Sábato Magaldi, Diogo Pacheco, João Magalhães. Tinha um panteão de nomes respeitabilíssimos, que passei a admirar, até venerar: Murilo Felisberto, Ivan Ângelo, Fernando Mitre, Sandro Vaia, Bill Duncan, Fernando Portela, Moisés Rabinovici, Carlos Brickman, Eduardo Borgonovi e Silva, Ricardo Setti, Nicodemus Pessoa, Gilberto Mansur, Anélio Barreto, Valdir Saches, José Maria Mayrink. E ainda tinha tanta gente que havia chegado um tanto ou um pouco antes de mim e já eram respeitáveis, admiráveis (tantos, que temo esquecer de vários): Marco Antônio Menezes, Moacir Japiassu, Fernando Moraes, Guilherme Cunha Pinto, Sérgio Rondino, Márcia Lobo, Valéria Wally, Humberto Werneck.
Myltainho (Mylton Severiano da Silva nos documentos, Myltainho sempre) já tinha deixado o jornal quando cheguei – como tantos outros, que ajudaram a criar o JT em 1966 e logo saíram, muitos deles seguindo Mino Carta para criar a Veja, em 1968.
Myltainho era uma lenda – o bom texto. Myltainho, Sérgio Pompeu. Os bons textos, os grandes textos.
Eram elogiados sem parar pelos mais velhos, mais experientes. Ficavam, portanto, acima, muitíssimo acima de mim, pobre foca que gostaria um dia de ter um bom texto.
Eram lendas.
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E aqui tento me explicar um pouco. Ao contrário da maior parte das pessoas que vão dar no jornalismo, minha grande admiração não era tanto para o que é a base da profissão: o repórter. Minha ligação maior sempre foi com o texto. A forma com que a apuração dos fatos é apresentada.
E o Jornal da Tarde era o maior laboratório de texto que havia na imprensa brasileira, naquele final de anos 60, início dos 70.
Claro: sempre tive imensa admiração e respeito pelos grandes repórteres, e pelos grandes analistas. Mas eu tentava aprender mesmo era com os caras do bom texto.
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Alguns anos mais tarde, cheguei a trabalhar, por algumas semanas, com o grande Sérgio Pompeu, numa experiência que durou pouco, uma tentativa de unir o tom de Samuel Weiner com o dinheiro dos então donos da jovem Editora Três, um jornal chamado Aqui São Paulo, de curtíssima duração.
Jamais cheguei a trabalhar ao lado de Myltainho. Ele permaneceria sempre como uma lenda, a ser apreciada, admirada à distância, ao contrário de tantos outros citados acima com quem acabaria tendo o orgulho, a honra de trabalhar lado a lado, aprendendo – ou, no mínimo, tendo a oportunidade de aprender.
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Myltainho viveu 50 anos de jornalismo – e foi, e disso ninguém pode discordar, um dos nomes mais importantes do jornalismo brasileiro nos últimos 50 anos. Vivi no jornalismo menos de 40; nunca pretendi ser importante, e nunca fui – mas tenho um orgulho imenso de ter participado de várias equipes de jornalistas brilhantes. E então – embora isso possa parecer saudosismo, nostalgia – digo, com o peito cheio, que tivemos grandes momentos nas redações porque admirávamos os mais velhos, os mais experientes. Os mais talentosos.
Eu tinha um respeito absurdo por todas aquelas pessoas que faziam o Jornal da Tarde quando cheguei lá. As pessoas que chegavam na mesma época, e nos vários anos seguintes, tinham o mesmo respeito, a mesma reverência.
No velho JT, havia um costume de cada um apresentar aos colegas sua idéia de lead, sua proposta de título. Me lembro como se fosse hoje de ver o Castor (sim, ninguém o chamava de Eduardo Borgonovi) passar de mesa em mesa com uma lauda na mão perguntado o que os colegas achavam daquele título que ele tinha bolado. Ou com duas ou três propostas, para ver qual agradava mais. Quando eu estava no meu segundo ano de JT, ele já perguntava a mim o que eu achava – ele, um dos melhores tituleiros que havia e que já houve, perguntava para um porcaria de um foca o que ele achava!
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Tenho uma vaguíssima lembrança de que, uma vez, Myltainho veio para ocupar meu lugar como editor de Cultura da Afinal.
Eram os dias negros da revista criada em setembro de 1984 por Fernando Mitre, com Sandro Vaia, Anélio Barreto e Ari Schneider como seus editores-executivos. O dinheiro do dono do empreendimento, um cubano irresponsável, estava acabando, os salários começavam a atrasar, vários editores procuravam empregos mais seguros.
Me ofereceram a expectativa de uma vaga numa nova revista a ser criada pela Abril. Era só a expectativa de uma vaga numa revista a ser criada, mas topei, e me demiti, depois de – é o que eu me lembro – ter acertado com Myltainho que ele assumiria meu lugar.
E aí viajei de férias, uns dez dias de férias. Durante esse breve período, aconteceu que: a) o projeto da nova revista da Abril foi abandonado: e, b) o Myltainho – é o que eu me lembro – achou aquele negócio de editar Cultura numa revista semanal de informação que caminhava rapidamente para o brejo era muito chato.
Myltainho – é o que eu me lembro – foi-se embora após duas semanas; e, após duas semanas, meti meu rabinho entre as pernas e me sentei diante da mesma mesa que havia abandonado tão pouco tempo atrás.
Na época, o diretor de Redação era Sandro Vaia. Perguntei se ele se lembrava dessa história – ele não se lembrava.
Falei com Lu Fernandes, que foi presidente do Sindicato dos Jornalistas, sobre a morte de Myltainho – e ela comentou que não o conheceu, que, quando ela começou na profissão, ele já era uma lenda.
Sandro e Lu me comprovam, como se fosse preciso comprovar: Myltainho é uma lenda.
Os jornais vão dizer amanhã que Myltainho morreu. Besteira. Lenda não morre.
9 de maio de 2014
O pobre foca que gostaria um dia de ter um bom texto. Com certeza conseguiu. Quando escreve e não compila,dá gosto ler.
O texto do Servaz me fez colocar na lista de leitura o livro “Realidade – História da revista que virou lenda”.
Miltinho, além de tudo você não dorme, cara!
Também sou admirador do texto do Sérgio, Miltinho. E toda vez que ele conta essas historinhas sobre o ambiente de redação, fico com saudade de uma profissão que abandonei, de situações e experiências que eu poderia ter vivido.
Luiz , nunca é tarde, “50anosdetextos” é sua redação e o Sérgio seu editor. Eu, seguidor e apreciador dos bons textos, dou trabalho a minha insônia sexagenária.
Servaz, amigo distante, tive sensação parecida ou igual quando comecei a trabalhar na sucursal do Grupo Estado e minhas pobres materinhas começaram a sair no mesmo JT (no Estado idem) do Servaz (lembra que eu te disse tempos depois que eu e um amigo guardávamos suas matérias sobre Bob Dylan, sir Paul et al?), Fernando Portella, Vital Bataglia, Marcão Faerman, Valdir Sanches, Celso Ming, Sábato Magaldi, Roberto Avallone… Quando fui pela primeira vez à redação quase saí com um bloquinho a pedir autógrafos. Quando conheci o Ivan Ângelo numa reunião de pauta, pô, lá estava o cara de quem havia lido, anos antes, “A Festa”, “A gaiola de vidro”. E os editores? Elói Gertel, Mário Marinho, acho que o Sandro já havia saído. E um diagramador melhor que o outro: Waltinho, Botelho e tal. Como diria minha avó, peguei do meio pro fim. Myltainho, Sérgio Pompeu e outros ficaram como lendas distantes. Mas, mais tarde, conheci o Jovem Gui, o Renatão Pompeu, o Mitre (que nunca me deu bola). Que overdose de talentos. Paro aqui, deu saudade. Só quem passou por isso, né? Lavo-lhes e escovo-lhes as sandálias e os pés. Gostei muito de ler isso. Abraços curitibanos.
Faltou o Júlio Moreno, o melhor repórter de cidades (no JT era Urbano) de todos os tempos.
Amigos, vocês exageram… Sobretudo você, Jorge!
Agora, é preciso dizer que meu amigo Miltinho, finalmente, falou alguma coisa que presta: de fato, Luiz Carlos, agora que você parou de mexer com números, bem que poderia voltar às letrinhas. Este espaço aqui estará sempre aberto para receber seus textos. Que, aliás, são de uma clareza cristalina difícil de se encontrar na imprensa hoje.
E devo explicar, Jorge, que não citei o Júlio Moreno no texto porque falei só dos que já estavam lá quando cheguei, ou que vieram junto de mim. O grande Júlio chegou ao JT uns dois anos depois.
As loas sobre Miltaynho são mais que merecidas. Se o Sérgio Vaz refere-se a ele como uma lenda no mundo do texto o que eu poderia dizer? Também fiz parte da turma que construiu a Abril nos anos 60 e 70 do Século passado. Dei meu sangue, ou melhor, meus dedos, em tempos de máquina de escrever, muito antes do computador. E ganhei de Miltaynho respeitosos cumprimentos. Era também um dos seus admiradores secretos.
Sergio Vaz,parabens pelo texto.!
Como irma cacula de Myltainho, sensibilizada agradeco! Myltainho,um ser de luz por onde passava,ou seria lenda?? Forte abc.
yara darin