Há canções que fazem sucesso extraordinário, tocam no rádio e nos bares e na TV sem parar, grudam na cabeça das pessoas como chiclete – e daí a pouco somem, desaparecem, são esquecidas. E há canções que ficam.
Phil Ochs (na foto) gravou sua canção “Changes” no disco Phil Ochs in Concert, lançado em 1966. (Ouça a gravação aqui.) É daquele mesmo ano a gravação feita pelo maravilhoso duo Jim & Jean em seu disco que teve o nome da música, em que as liner notes, as anotações da contracapa, eram assinadas pelo compositor. Além da canção “Changes”, o disco Changes tinha outras duas faixas assinadas por Phil Ochs. (Aqui, a versão de Jim & Jean.)
Quatro décadas depois, em 2005, o grande Eric Andersen regravou “Changes”, em seu disco Waves. Waves é um disco especial, daqueles bem pensados, bem planejados, que se baseiam em uma idéia. Antigamente, dizia-se sobre esse tipo de disco o adjetivo conceitual. Waves é uma revisão de algumas das grandes canções compostas pelos seus contemporâneos, seus colegas, camaradas, cúmplices. Tem Tim Buckley, Tom Paxton, Fred Neil, Phil Ochs, e até Lou Reed. A geração que surgiu nos anos 1960, a geração que aprendeu com Woody Guthtrie, Pete Seeger – grandes cantautores, que ficariam ensombrecidos pela figura imponente demais de um de seus colegas, Bob Dylan.
(E aqui é interessante e forçoso notar que, apenas três anos antes de Eric Andersen criar o belíssimo Waves, Dori Caymmi havia feito exatamente a mesma coisa, no álbum Contemporâneos, de 2002, em que o grande compositor, arranjador, maestro, gravou pérolas de seus colegas, camaradas, cúmplices da mesma geração – Paulinho da Viola, Chico, Caetano, Edu Lobo, Milton Nascimento.)
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Hoje tocou no meu shuffle “Changes” com Eric Andersen.
É uma maravilhosíssima regravação, é uma homenagem linda ao colega morto tão cedo, e tanto tempo atrás – a voz de Eric Andersen já demonstrando de sobra o passar o tempo, os muitos, praticamente inúmeros cigarros, sabe-se lá quantos destes que pagam impostos ou quantos dos que não pagam. Eric Andersen é de 1943, dois anos depois de Dylan e Joan Baez, e portanto em 2005 estava com 62 anos.
Pensei em botar um post no Facebook chamando para “Changes” cantada por Eric Andersen, e aí fui ao YouTube. Não achei – mas acabei descobrindo uma pérola fantástica, absurdamente linda: Neil Young cantando “Changes” no Farm Aid de 2013.
2013! 47 anos após a gravação inicial do autor, e da gravação estonteante de Jim & Jean!
Me dá vontade de perguntar quantas canções novas que tocam no rádio hoje serão lembradas daqui a 47 anos, mas não é disso que deve tratar este texto – seja lá o que for de que trata este texto.
Comentei com Mary: essa apresentação do Neil Young me faz admirar Neil Young ainda mais – se é que isso é possível, porque o cara é um dos músicos que mais admiro na vida. E me faz admirar “Changes” ainda mais – se é que isso é possível, porque esta é uma das músicas que mais admiro na vida.
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Em 2013, Neil Young, dois anos mais novo que Eric Andersen e cinco mais velho que eu, estava com 68. Um artista tão pleno, tão grande, não precisaria ouvir um imbecil da platéia gritar algo do tipo “Vamos lá, cante!”
Neil Young conversa com a platéia antes de cantar “Changes”. Está introduzindo a música, contando um pouco sobre a música e seu autor. Começa dizendo que a vida é curta, e todo mundo sabe disso – não há hora nenhuma como agora. E conta que conversou com um amigo, que era amigo do sujeito que escreveu a canção que ele cantaria a seguir, e o amigo ficou absolutamente mortificado quando o autor se matou. E Neil Young conta que falou para o amigo: mas isso acontece sempre, e você não deve se sentir culpado. Aconteceu comigo mesmo: fiquei sabendo que um amigo estava com problemas, e fiquei tentando entrar em contato com ele, e não consegui. Aí fiquei sabendo que ele se matou.
Phil Ochs se matou em 1976.
E aí é impossível não lembrar que Sidney Miller se matou em 1980, oito anos depois de Torquato Neto ter se matado.
Tanto talento que preferiu o atalho – ainda jovem, ainda sem ter chegado nem mesmo perto das dores que os mais velhos sentem. E isso para não falar dos que morreram jovem demais aparentemente por overdose – Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison – mas quem vai saber se não foi uma opção?
Neil Young, que esteve no fundo do poço da droga e saiu dela, aos 68 anos fala da canção que vai cantar a seguir na Farm Aid, o tradicional show anual para recolher fundos para os pequenos fazendeiros – e um idiota grita algo do tipo “vamos lá, cante”.
Diante de platéia que vaiava, Sérgio Ricardo quebrou o violão. Caetano Veloso parou de cantar e discursou – maravilhosamente, aliás.
Diante do débil mental solitário na platéia, Neil Young reage até com certa tranquilidade. “Ouvi ‘come on, let’s go’? On my way, buddy! I work for me.”
E em seguida diz que Phil Ochs foi um dos maiores poetas que já existiram. Avisa que ninguém ali na platéia conhece a canção – e então canta. (Veja o vídeo aqui.)
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Eu, que conheci “Changes” pouco depois de chegar a São Paulo, sem um tostão furado no bolso, só não chorei diante de Neil Young cantando a canção porque sou um imbecil incapaz de chorar.
Morava num pensionato, dividindo o quarto com um outro rapaz. E já havia subido na vida: durante os primeiros meses de São Paulo, morava numa edícula nos fundos da casa do meu irmão Arnaldo, uma bela casa, só que depois de Santo Amaro. Quando engrenei no primeiro emprego, e tive dinheiro suficiente para pagar por meio quarto de pensionato, finalmente me mudei para São Paulo – São Paulo mesmo, Rua Fernando de Albuquerque, quase esquina com Augusta, a quatro quadras da Paulista. Meio quarto de pensionato, mas localização privilegiada.
Na Augusta, logo abaixo da Fernando de Albuquerque, na verdade acho que logo abaixo da Rua Costa, tinha uma pequena loja de discos. Ia lá sempre que podia. Fuçava, fuçava. Comprar, comprava pouco, claro.
Tinha um toca-discos xexelento, coisa vagabunda, baratinha. Não me lembro o que era – acho que era um Philips que vinha como caixa e, aberto, tinha duas caixinhas de som minúsculas, ridículas.
Na loja, vi o disco Changes de Jim & Jean. Vi que era folk, e tinha uma canção de Dylan. Comprei.
Ouvi o disco Changes quase até furar.
Ele depois passou a ser tocado em lugares melhores, e em aparelhos de som melhores, à medida em que meu salário ia aumentando.
Interessante: pensando bem, o LP Changes que comprei quando morava no pensionato da Fernando de Albuquerque fez tantas mudanças de endereço e de toca-discos quanto eu. Faço aqui as contas: Fernando de Albuquerque, Marquês de Paranaguá, General Osório, Bela Cintra, João Moura. Não, acho que ele não foi para meu período Jauaperi; foi direto da João Moura para a Ministro Godoy. E da Ministro Godoy finalmente para a Iperoig.
Meu! O LP Changes passou por sete endereços diferentes!
E ao fazer esse inventário, inventariei que, na cidade que escolhi para morar, passei por nove endereços – já que Changes ainda não existia quando morei pra lá de Santo Amaro, e não viajou até Moema comigo para os poucos meses em que vivi lá.
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Quando fiz a mudança da Ministro Godoy para o outro lado da Avenida Sumaré, para a Iperoig, em 1988, brinquei, falando muito sério, que aquela seria a última antes da definitiva, para a Vila Alpina.
Tenho do dia da mudança uma lembrança forte: Fêzinha, adolescente linda, maravilhosa, ajudava o paiê dela. E o paiê dela teve uma sensação apavorante ao ver a quantidade de caixas d’água Eternit que chegavam do apartamento gigantesco da Ministro Godoy para o apartamento bem menor da Iperoig. Me senti tonto, como se estivesse acontecendo ali O Aprendiz de Feiticeiro do Fantasia de Disney, aquela coisa que não pára nunca.
A adolescente Fêzinha deu a maior força. Lavamos todas as dezenas e dezenas e dezenas de caixas d’água nos banheiros da casa nova, a que poucos anos depois viria a ser também a dela.
Changes ficou numa das dezenas de caixas d’água por um bom tempo. Com, é claro, saídas para pousar no toca-discos.
Quando a onda do CD veio parecendo que para ficar, comprei um gravador de CD para passar os LPs para a nova mídia. Changes foi um dos primeiros LPs que transpus para o CD.
Bem mais tarde, descobri que todas as músicas do disco estavam disponíveis em versão digital num dos vários endereços da internet dos quais era possível baixar música.
Baixei a íntegra de Changes. Hoje tenho Changes em LP, em CD, no computador, nos iPods.
E continuo, apesar disso, ou acima de tudo, tendo um certo medo de mudanças.
Foi John Denver que fez uma das mais belas frases sobre isso: “Changes somehow frightens me”.
A estrofe inteira é assim (com perdão pela perda da beleza quando se muda um poema de uma língua para outra):
“Tenho ficado aqui pensando ultimamente sobre minha vida, os dias que passam depressa demais, as noites que raramente são curtas, todas as coisas que fiz e como foi, e não consigo acreditar em mim mesmo. As mudanças, de alguma maneira, me amedrontam.”
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Uma vez, antes de me mudar da Ministro de Godoy para a Iperoig, tive uma paixão por uma moça linda que muitos anos antes tinha tido uma paixonite por mim. Por umas dessas coincidências que acontecem todos os dias na vida de todo mundo, ela havia morado exatamente na terra de John Denver, e ficou surpresa por eu botar para ela ouvir (num som bem melhor do que aquele da Fernando de Albuquerque, é claro) Andreas Vollenweider. São engraçadas as pessoas que migram para o Primeiro Mundo: acham que nós, que ficamos aqui, não temos acesso ao que de bom se faz do outro lado do Equador.
Essa moça achou estranho eu conhecer John Denver e Andreas Vollenweider.
Strange days, indeed, Ma!
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Uau! Viajandei.
Mudanças, mudanças.
Eu só queria contar que me surpreendi com a versão extraordinariamente bela de “Changes” com Neil Young que por acaso encontrei no YouTube.
Mas, já que estou aqui, bem que gostaria de tentar fazer uma versão. Conseguirão nossos heróis?
Changes (Phil Ochs) | Changes (Phil Ochs) |
Sit by my side, come as close as the airAnd share in a memory of grayAnd wander in my wordsDream about the pictures that I play of changes
Green leaves of summer turn red in the fall To brown and to yellow, they fade And then they have to die Trapped within the circle time parade of changes
Scenes of my young years were warm in my mind Visions of shadows that shine ‘Til one day I returned and found they were The victims of the vines of changes
The world’s spinning madly, it drifts in the dark It Swings through a hollow of haze A race around the stars Journey through the universe ablaze with changes
Moments of magic will glow in the night All fears of the forest are gone But when the morning breaks They’re swept away by golden drops of dawn of changes
Passions will part to a strange melody As fires will sometimes burn cold Like petals in the wind We’re puppets to the silver strings of souls of changes
Your tears will be trembling, now we’re somewhere else One last cup of wine we will pour And I’ll kiss you one more time And leave you on the rolling river shore of changes
So sit by my side, come as close as the air And share in a memory of gray And wander in my words Dream about the pictures that I play of changes
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Sente-se do meu lado, fique tão perto quanto o ar E divida uma lembrança de cinza E pense sobre minhas palavrasSonhe sobre os desenhos que faço de mudanças.
Folhas verdes de verão viram vermelhas no inverno, Viram cinzas e amarelas, elas murcham E então têm que morrer Pegas dentro da parada do círculo do tempo das mudanças.
Cenas dos meus anos jovens estavam quentes na minha mente Visões de sombras que brilham Até o dia em que voltei e descobri que eram As vítimas das vinhas das mudanças.
O mundo gira loucamente, à deriva, no escuro, Balança através de um vazio de neblina, Uma corrida ao redor das estrelas, Uma viagem através do universo em chamas com mudanças.
Momentos de mágica vão brilhar na noite, Todos os medos das florestas desaparecidos Mas quando a manhã chegar Eles serão levados embora por gotas douradas de orvalho das mudanças.
Paixões vão se separar diante de melodias estranhas Enquanto fogueiras vão às vezes queimar frias Como pétalas no vento Somos bonecos para o colar dourado de almas em mudança.
Suas lágrimas vão tremer, estaremos em outro lugar. Um último copo de vinho vamos encher E vou beijar você mais uma vez E deixar você na praia do rio rolante de mudanças.
Sente-se do meu lado, fique tão perto quanto o ar E divida uma lembrança de cinza E pense sobre minhas palavras Sonhe sobre os desenhos que faço de mudanças.
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Maio de 2014