Mariana

Foi numa madrugada fria de junho de 1978 que conheci o verdadeiro Hector Gulberti. Argentino, cara de cantor de tango, um dia viera pedir-me emprego na redação do Jornal da Cidade, de Jundiaí, do qual eu era o redator-chefe. Apresentou-me como única credencial a declaração verbal de que trabalhara na diagramação do El Clarín, diário de Buenos Aires.  Como precisava de um secretario gráfico para me ajudar no fechamento, dei-lhe a oportunidade e, assim, com um desempenho razoável, ele foi ficando.

De segunda a sábado, depois de fechada a edição do dia, já quase de madrugada, íamos jantar num restaurante ao lado do jornal. Numa dessas noites ele contou-me seu maior segredo: mostrando uma carteira de identidade da Marinha Argentina, disse ter a patente de capitão-de-fragata e que no auge do regime militar portenho comandara uma base de operações ligada à Escola de Mecânica da Armada, de triste memória. Nesse local, camuflado como uma empresa de nome Automotores Orletti, milhares de presos políticos foram torturados e mortos. Disse mais: perseguido em seu país, entrara clandestinamente no Brasil. Como duvidei da autenticidade da identidade, Hector abriu a bolsa que carregava a tiracolo e mostrou- me uma pistola calibre 45 que trazia no cabo a insígnia da ESMA. Aquilo bastou para eu crer que realmente ele era um cara da pesada.

Durante os meses em que trabalhamos juntos, fiz questão de anotar mentalmente os depoimentos que Hector me deu e ao chegar em casa passava as informações para o papel. Assim, em pouco tempo tinha em mãos um dossiê sobre seu papel no período de repressão que marcou o auge da Operação Condor, que caçou opositores às ditaduras que os militares sustentavam no Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Chile. Em síntese, como seu maior feito ele se gabava de ter comandado o desmantelamento de um “aparelho” subversivo, ação durante a qual matou dois casais de uruguaios e levou embora um bebê, que horas depois entregou a um oficial do Exército, amigo seu.

Quando fui trabalhar no Estadão,no final de 1979, Marcos Wilsonestava voltando de BuenosAires, onde fora correspondentedo Grupo Estado. Iniciada a amizadeque nos une até hoje, deu-meentão a coceira de lhe falar sobreas anotações dos tempos do Jornalda Cidade. Sua reação foi deespanto, pois muito do que Hectorme revelara batia com as suassuspeitas e com as informaçõesque trouxera da Argentina. Mesmoassim achou prudente buscaruma segunda opinião. Consultouentão um amigo que trabalhavana agência de notícias Efe e quetambém morara na Argentina. Areação do correspondente espanholfoi de espanto maior que odele. Chancelou quase todas asinformações, exceto algumas quenão podia autenticar por falta demaiores dados. Alertou que aquilotudo era uma bomba, pois pelaprimeira vez um militar argentinoconfessava a autoria de assassinatosde civis.

Foram quase dois anos deinvestigações, concluídas com umaentrevista na sede do Estadão,na qual Marcos Wilson, José Maria Mayrink, Luiz Fernando Emediato, Roberto Godoy e eusabatinamos Hector a fim de confirmarou não as declarações queele me dera. Ao final, recusou-sea responder a uma única pergunta:a quem entregara a menina,que descobrimos ser Mariana Zaffaroni de Castillo, filha docasal de uruguaios mortos porHector – Maria Emilia Islas e Jorge Zaffaroni.

Soubemos então que ela eraa neta que Marta Zaffaroni de Castillo buscava já havia dezanos e da qual publicara uma fotoem jornais de Brasil e Argentinana tentativa de localizá-la. Nessaépoca, Mariana era a única criançauruguaia desaparecida que aindanão fora encontrada e seus olhostornaram-se símbolo das marchaspelos desaparecidos.

Com a mesma competênciaque marcou sua carreira, MarcosWilson encerrou as investigaçõescom material suficiente para umlivro – que ele jamais cogitou publicar,o que eu gostaria de fazer epenso mesmo em fazê-lo.

Eram tantas informações, entrevistas,depoimentos e fotos, mas omaterial acabou resumidonuma série de seis páginas, coisaimpensável no jornalismo de hoje.Publicada no final de janeiro de1983, ganhou o Prêmio Rey deEspaña daquele ano, concedidopela Efe. Dois detalhes importantes:foi o primeiro dado aojornalismo impresso; emboraaté então a honraria privilegiasseapenas os profissionais de línguaespanhola, a decisão de concedê-lo ao Estadão deveu-se ao fato deque se tratava de material ligadodiretamente a um país de fala castelhanae republicado por jornaisdo Brasil e do exterior.

Assim que as reportagens saíram,Marta Zaffaroni foi bater naredação. Emocionada, contou queas informações de Gulberti confirmavamas suas suspeitas: dosquatro que ele matara, dois eramseu filho Jorge e sua nora MariaEmilia. Portanto, o bebê de 18 mesesque ele poupara só podia sermesmo sua neta Mariana. Pediu-nos então, desesperada, que acolocássemos frente a frente como militar, pois tinha esperança deque a ela Hector contaria sobre oparadeiro da menina, então já comcerca de 11 anos.

Recebi então a missão de iratrás do argentino. Localizei-o nointerior paulista, trabalhando numagráfica em Rio Claro, e depois demuita negociação o convenci a ircomigo ao Rio. Fiz o encontro dosdois na Cinelândia e se ele contouo que Marta queria saber, não sei,pois ambos guardaram segredodessa conversa e eu jamais osencontrei novamente.

Mais tarde, Ester Gatti, mãede Maria Emília, recebeu emMontevidéu documentos que lheforam enviados depois da mortede Marta, encontrados no seuapartamento em São Conrado.Somando essas informaçõescom as outras que já tinha, a avó maternalançou um livro e nele está, numcapítulo inteiro, a matéria que fizcom Marta e Hector, publicada noEstadão em julho de 1983. Depoisde muito tempo procurando, EsterGatti finalmente localizou Marianaem 1992 e esta pode enfim recuperarsua verdadeira identidade.

Maria Ester Gatti, fundadora daAssociação de Mães e Parentesde Uruguaios presos durante aditadura, morreu dia 5 de dezembrode 2010 em Montevidéu.Com ela se foi mais um pedaçoda minha vida de jornalista e deuma das melhores reportagensinvestigativas que levaram minhaassinatura. Resta-me apenas Mariana,queum dia, menina de olhos lindos, decerta forma ajudei a ser resgatadadas mãos da ditadura argentina. Eque, certa e infelizmente, não tereia felicidade de conhecer…

Plínio Vicente publica semanalmente suas crônicas no Jornal de Roraima.

 

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