Manoel de Oliveira de calções

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Até mesmo Hemingway teve infân­cia. Antes dos tou­ros, dos litros de dry-martinis, de Paris em festa, houve um Ernest antes de haver um Hemingway. Diria mais, ainda o decano de todos os cine­as­tas, o nosso Manoel de Oli­veira, não tinha nas­cido e já Hemingway tinha infância.

Esse girino de escri­tor andava numa escola longe de casa e escre­via à mãe. Um dia fal­tou às aulas. Cor­reu entre os cole­gas o boato de que se afo­gara. Vol­tou e os miú­dos chamaram-lhe fan­tasma. O Hemingway, que ele ainda não era, tomou conta de Ernest e escre­veu à mãe, dizendo-lhe que a culpa era da roupa. Andava com uns cal­ções mir­ra­dos, uns cal­ções de Ernest, cal­ções de afo­gado, e pedia à mãe que lhe man­dasse umas cal­ças com­pri­das. Tal­vez tenha sido a pri­meira prosa meto­ní­mica de Hemingway. Pedia umas cal­ças com­pri­das, mas depois, a escrita a que ele tinha dado uma perna, vilã como é, tomou-lhe a mão, tomou-lhe o braço: “… os punhos do casaco ficam a dez cen­tí­me­tros da mão.

Assi­nava, “o teu filho afo­gado”, mas o dra­má­tico post scrip­tum desse bilhe­ti­nho, levando a escrita a peito, já foi o Hemingway de Tor­rents of Spring a escrevê-lo: “Os botões da minha camisa reben­tam e voam pelos ares quando res­piro fundo.

Um par de cal­ças com­pri­das foi o pri­meiro pré­mio lite­rá­rio de Hemingway. A mãe mandou-lhas, tenho a cer­teza, uma cer­teza que duas foto­gra­fias do meu álbum de infân­cia refor­çam. Numa, tirada aos meus seis anos, de per­nas esca­ga­ni­fo­bé­ti­cas, joe­lhos espe­ta­dos em agu­lha, estou eu a nadar nos cal­ções de Hemingway. Nou­tra, que se vê mesmo ser a sala de espera da ado­les­cên­cia, tenho as pri­mei­ras cal­ças com­pri­das e as per­nas não estão a fugir à chuva, que era o maior vexame a que um par de cal­ças se podia então sujeitar.

Não sei se o senhor Manoel de Oli­veira tem foto­gra­fias de cal­ções cur­ti­nhos. Mas tem um dos raros fil­mes por­tu­gue­ses com um ima­gi­ná­rio de infân­cia. No seu Aniki-Bobó há um bando de miú­dos que estão entre os cal­ções e as pri­mei­ras cal­ças com­pri­das. O Car­li­nhos, herói sonso do filme, tem as minhas per­nas esca­ga­ni­fo­bé­ti­cas, e o Edu­ar­di­nho, esse preâm­bulo de Tar­zan, tem o peito expan­sivo de Hemingway. Aniki-Bobó mostra-nos o que tal­vez a escrita de Hemingway não con­fesse: vai-se a ver e, cal­ções cur­tos ou cal­ças com­pri­das, tudo o que se faz é por causa de uma boneca.

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(Aqui sou eu, escaganifobético, e a minha mana linda na casa grande e sanzala.)

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

 

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