Hemingway, o cinema e o copo de cerveja do pai

zzzzava

Para Hemingway, Hollywood estava longe de ser o Paraíso na Terra. Hollywood era a selva dos pro­du­to­res de fil­mes, onde o escri­tor é a gazela a fugir da boca de leão do pro­du­tor: “Vamos ter com o pro­du­tor à fron­teira da Cali­fór­nia. Atiramos-lhe com o livro para o lado de lá. Ele atira-nos com o dinheiro para o lado de cá. Sal­ta­mos para o carro e gui­a­mos de volta como o diabo a fugir da cruz.”

Entre o cínico e o ingrato, Hemingway foi uma dezena de vezes a essa fron­teira e trouxe de lá umas boas malas de dinheiro. Diga-se que foi sopa em que Hemingway quase sem­pre cus­piu. Gos­tava tanto dos fil­mes que saca­ram dos seus livros como nós gos­ta­mos de óleo de rícino.

O futuro sui­cida que­ria o que os pro­du­to­res não lhe podiam dar, fide­li­dade à letra dos roman­ces. Um dos mai­o­res argu­men­tis­tas de Hollywood, Ben Hecht, que o adap­tou, torceu-se todo com o estilo do escri­tor: “O filho da mãe escreve sobre a água…” Hecht via a prosa de Hemingway fugir-lhe entre os dedos e per­ce­beu que a melhor forma de adaptá-lo era traí-lo.

Quem mais bem o traiu foi um amigo. O rea­li­za­dor Howard Hawks era copos e caça­das com Hemingway. Um dia, disse-lhe, apon­tando para To Have and Have Not: “Aposto que faço do teu pior romance um bom filme.” Trai­ção das trai­ções, para o guião, Hawks foi bus­car Faulk­ner, o grande rival de Hemingway, e fez, com o par Bogart-Bacall, a obra-prima que o romance de Hemingway não é.

Mas o ódio de Hemingway eram os pro­du­to­res, sobre­tudo quando não lhe paga­vam. David O. Selz­nick, pro­du­tor da ver­são de 1957 de A Farewell to Arms, já tinha os direi­tos, que o escri­tor ven­dera para a ver­são ante­rior, de 1932. Mesmo assim, pro­me­teu a Hemingway que lhe daria 50 mil dóla­res se tivesse lucros. Hemingway respondeu-lhe que quando o pro­du­tor põe como heroína do filme a sua velha mulher de 40 anos, e estava a falar de Jen­ni­fer Jones, não há lucro que se cheire.

Foi ver a estreia. Saiu furi­oso, meia hora depois, e disse a quem o ouviu: “Se isto tiver êxito, o Selz­nick que tro­que os 50 mil dóla­res em moe­das e as meta pelo cu até lhe saí­rem pelos ouvi­dos. Ver este filme é mais feio do que mijar no copo de cer­veja do pai.”

Mal­di­ção. Hemingway nunca rece­beu os 50 mil, nem em notas, nem em moe­das, e Selz­nick nunca mais fez filmes.

zzzzfarewell

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

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