Assim que desembarcou em Boa Vista, em setembro de 1988, o ex-primeiro-ministro do Canadá, Pierre Trudeau, me ligou pedindo para que eu o assessorasse por aqui. Levei um susto, pois nem sabia que ele viria ao território. Fui informado de que consultara alguém do Estadão – não disse exatamente quem – para saber quem era o correspondente em Roraima, pois queria que o acompanhasse na visita a uma aldeia indígena.
Ele recebeu-me pessoalmente no aeroporto e me explicou, num espanhol arrastado, que queria um encontro com Davi Kopenawa, líder ianomâmi, e que já nessa época se destacava na luta contra a crescente invasão do habitat de seu povo pelos garimpeiros vindos de todo o Brasil, das Guianas Inglesa e Holandesa e Venezuela.
Eu o conheci apresentado pelo bispo dom Aldo Mongiano, seu mentor espiritual e político, e passei a ter com ele um bom relacionamento. Aliás, não só com ele, mas também com sua mulher, Fátima, com o pai dela, tuxaua Lourival, e principalmente com Teca, cujo nome verdadeiro jamais soube, mas que foi uma das figuras mais incríveis que conheci em Roraima. Nascida no Surumu, cozinheira da melhores – respeitada por brancos e índios –, era também enfermeira e intérprete, isso graças aos mais de 30 anos de convivência com os índios e de trabalho nos postos da Funai.
A bordo de um Caravan da FAB lá fomos nós e quase duas horas depois aterrissamos na pista do Toototobi, que usava um trecho da BR-210, a Perimetral Norte, estrada aberta pelos militares durante o milagre brasileiro e abandonada por conta das enormes pressões internacionais. Essa foi, creio, a estrada que mais matou índio na história do Brasil.
Davi e Fátima receberam Trudeau e comitiva, os levaram até à aldeia e mais tarde nos reunimos para o almoço no malocão do posto. Como sempre, Teca caprichara no cardápio: como entrada, tacacá com jambu acompanhados de iscas de peixe; salada de palmito pupunha e folhas frescas de chicória; e, como pratos principais, porcão assado com rodelas de inhame, caldeirada de tucunaré com batata-doce e marrequinha guisada ao molho de murici. Para completar, três variedades de cremes na sobremesa: cupuaçu, graviola e bacuri. Para beber, suco de maracujá e de camu-camu, ou caçari, uma espécie de ameixa nativa que tem mais vitamina C que acerola.
O que ninguém esperava é que um incidente bizarro quase acabaria com o almoço.
Na cabeceira da mesa sentou-se Pierre Trudeau; na lateral à sua esquerda, pela ordem, o presidente de uma indústria de bebidas canadense, dono jatinho Falcon tri-reator em que viajavam, mais sua esposa, um deputado e esposa e na ponta, eu; à direita acomodaram-se Davi, Fátima, o tuxaua Lourival e os dois pilotos do Caravan.
Lourival tinha por costume mascar tabaco, hábito, aliás, comum entre os índios. Notei que ao sentar-se à mesa ele não se aliviara do volume de saliva que acumulara em sua boca, que, aos poucos, ia tomando a forma de um bacamarte. Antevi o pior; ou melhor, antevi um puta desastre.
Como o velho cacique, dada a sua posição hierárquica na tribo, tinha que ser servido, Teca fez seu prato e enquanto os outros iam escolhendo o que comer, ele esparramou seu olhar guloso sobre o que ela lhe servira: um naco de carne de porco do mato, farinha d’água, algumas pimentas malaguetinhas curtidas, variedade endêmica nas malocas, e uma caneca cheia de suco.
Aquela visão me fez parar o que estava fazendo. Mirei petrificado a cena que começou a se desenhar. Antes de pegar na colher, Lourival virou o rosto de lado e despejou no chão de cimento e vermelhão uma enorme placa de cuspe misturando saliva e restos de tabaco.
A mulher de Trudeau, que estava à sua frente, deu um berro, saltou do banco e foi parar na beira do igarapé a uns 30 metros de distância, atrás do malocão. Vomitou tudo o que ainda não comera.
Nós, os de estômagos mais fortes, fomos bravos o suficiente para, com enormes caras de pau, ignorar o episódio. Já vitimados pela intensidade da fome, aquilo não era suficiente para fazer desfeita aos esforços da cabocla cozinheira, que tanto se empenhara para transformar aquele almoço em algo digno de um restaurante da cidade.
Para encerrar, hilário mesmo foi a reação de Lourival quando, ao final da visita, presenteado com um canivete suíço, autêntico Victorinox, tentou descobrir que bicho era aquilo. Até hoje não me sai da lembrança a cara dele quando olhou para aquela geringonça sem entender nada. Afinal, me pergunto, o que ele faria com aquele trem?
O autor é jornalista em Roraima
Plínio, eu ficaria com o peixe, a salada de palmito, e o tucunaré. Um pedacinho da marreca. E o cupuaçu. Lourival que escarrasse o quanto quisesse.
A propósito, Trudeau foi de tênis, como desceu do avião em Brasília, em 1981, para encontrar com o Figueiredo?