É Robert Altman e são cinco da manhã

MASH, o filme que me faz aqui falar de Alt­man, é de 1970. E foi nesse ano que eu o vi em Luanda, no cinema São Paulo, ape­sar do IMDB o dar como estre­ado em Por­tu­gal ape­nas em Setem­bro de 74. Que se lixe, em Angola estreou antes. Estreou logo. E eu vi-o, com o puto Toni­nho, que rece­bia bilhe­tes à borla do “Pro­vín­cia de Angola”, e os par­ti­lhava com os ami­gos — e nesse dia tocou-me a mim. Não fazia a mínima ideia de quem fosse Alt­man e tive uma das noi­tes mais glo­ri­o­sas que um filme já me deu. Ri-me con­vul­si­va­mente — toda a sala se ria con­vul­si­va­mente — e achei tudo aquilo sub­ver­sivo, veloz, maluco, obs­ceno. E onde é que andará o puto Toni­nho? Será cirur­gião? Ter-se-á metido nos char­ros? Nas cáp­su­las negras? 

Robert Altman

Antes de ser o van­guar­dista que foi, Robert Alt­man fez tudo o que era séries ali­men­ta­res em tele­vi­são. Nem lia os guiões. O assis­tente apanhava-o, em casa, às cinco da manhã, contava-lhe a his­tó­ria e o que iriam fil­mar nesse dia.

Vemo-lo a entrar no pla­teau e a cum­pri­men­tar os acto­res que acaba de conhe­cer. Faz uns pla­nos fecha­dos sobre os pés e mãos do tipo que na lista apa­rece com o salá­rio mais alto. Deve ser o pro­ta­go­nista, pensa Alt­man. A seguir, vira-se para outro actor e explica-lhe como vai ser caçado pela polí­cia e pelo heli­cóp­tero que lhe vai cair em cima. “Não”, diz-lhe o actor. “Como não?”, irrita-se Alt­man. “Não, não sou o assas­sino, eu sou o protagonista.”

A cena explica, mais do que muito cuspo aca­dé­mico, o gosto de Alt­man pelo impro­viso e pelas rup­tu­ras nar­ra­ti­vas. Quando as por­tas gran­des de Hollywood se escan­ca­ra­ram, foi este Alt­man das cinco da manhã que entrou por elas.

MASH é o maior fra­casso da car­reira de Alt­man. Por uma razão: pelo estron­doso sucesso que teve. O autor concebeu-o para bom­bar­dear os mais glo­ri­o­sos este­reó­ti­pos dos fil­mes de guerra. Que­ria cho­car os espec­ta­do­res, fê-los rir desvairadamente.

Fil­ma­vam sem sabe­rem muito bem o que fil­ma­vam. Alt­man que­ria fazer o anti-filme de guerra. As vede­tas, Donald Suther­land e Elli­ott Gould, que não sabendo des­con­fi­a­vam, ten­ta­ram cor­rer com ele. Mas quem man­dava ali era o Alt­man das cinco da manhã: as falas dos acto­res foram impro­vi­sa­das, havia diá­lo­gos sobre­pos­tos, uma cam­bada de acto­res estre­an­tes sem­pre em cena. Até o argu­men­tista rene­gou o filme.

zzmash

Lembrem-se de MASH. Esta­mos num hos­pi­tal de cam­pa­nha, que seria na Coreia se toda a gente, na altura, não pen­sasse só no Viet­name. Ouve-se um cla­mor de estri­pa­dos e dece­pa­dos. Cirur­giões dege­ne­ra­dos ras­gam a carne humana, sutu­ram bar­ri­gas, ampu­tam per­nas, num mar de san­gue e de indis­ci­plina dio­ni­síaca. Há uma enfer­meira de lábios arden­tes e alti­fa­lan­tes a debi­tar men­sa­gens que tomara hoje o Twit­ter. Faz-se sexo ao pé dos mor­tos, há fute­bol ame­ri­cano, char­ros e um sui­cí­dio indolor.

Os cirur­giões são uns car­ni­cei­ros insur­rec­tos, mas é por isso que sal­vam pes­soas. Como os seus cirur­giões, MASH é a obra-prima que nasce da mais ter­ro­rista das fil­ma­gens. É um filme que, a pon­tapé, faz sair a bon­dade de cena pela porta dos fun­dos, pro­vando que, às cinco da manhã, no impi­e­doso cená­rio de guerra, só um sádico é capaz de fazer o bem.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

Um comentário para “É Robert Altman e são cinco da manhã”

  1. Sào cinco da manhã, relendo Manuel, chego a conclusão que o puto Toninho era um dos cirurgiões de MASH.
    Altman operou uma mudança em Hollywood, fez seu protesto em forma de sátira.

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