Deus nos dê valentes inimigos

zzsabrina1Deus nos dê valen­tes ini­mi­gos e já explico porquê.

Em 1939, Lubitsch e Billy Wil­der pedi­ram a Cary Grant que fosse o par de Greta Garbo em Ninot­chka. Leva­ram sopa e temos todos pena.

Em 54, quando fil­mou Sabrina, Wil­der implo­rou a Grant que fosse o irmão mais velho, a ter­ceira figura do tri­ân­gulo amo­roso que come­çava em Wil­liam Hol­den e aca­bava no ine­fá­vel anji­nho a que cha­ma­mos Audrey Hep­burn. Vol­tou a levar sopa e ainda bem. Teria sido um erro gros­seiro, como Wil­der havia de reco­nhe­cer. Só que não há molho, nem o de tomate, que faça Wil­der gos­tar de Humph­rey Bogart, a esco­lha que o pro­du­tor impôs.

Sabrina é a his­tó­ria de dois irmãos mili­o­ná­rios e de uma Cin­de­rela, filha do moto­rista da famí­lia. Os dois irmãos são dife­ren­tes, mais ainda do que o pre­si­dente Cavaco e o pre­si­dente Soa­res. Bogart, que faz no filme um Cavaco per­feito, é o eixo dessa diferença.

Mas Wil­der, sim­pli­fi­cando, não gra­mava Bogart. Quando falava de Bogart, Wil­der ante­ce­dia sem­pre o que ia dizer por uma meto­ní­mica alu­são à mãe do actor, que omito por espe­cu­la­tiva. Explica que, no pri­meiro dia de fil­ma­gens, não o con­vi­dou para beber copos numa orgia de homens e tequila impro­vi­sada no cama­rim de Wil­liam Hol­den. Habi­tu­ado a roda­gens húmi­das com John Hus­ton, Bogart podia per­doar muita coisa, mas ser igno­rado em maté­ria etí­lica faria dele tudo menos um Jesus Cristo. Resul­tado, fil­mar Sabrina foi um inferno.

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Venham comigo assis­tir às fil­ma­gens. Wil­der está agora a entre­gar o script duma cena a Bogart. O actor lê o papel, vira-se para Wil­der e pergunta-lhe: “Que idade é que tem a sua filha?” O embe­ve­cido Wil­der res­ponde: “Está agora nos sete anos.” E o cínico Bogart explode: “Foi ela que escre­veu esta treta, não foi?” Assim, dito alto e bom som, com voz de bour­bon, em frente a toda a equipa.

Quando Bogart teve o can­cro que aca­bou por matá-lo, recla­mou a pre­sença do rea­li­za­dor a quem infer­ni­zara a vida. “Foi mara­vi­lhoso comigo, abso­lu­ta­mente mara­vi­lhoso e pediu-me per­dão,” lem­bra Wil­der. Nesse quarto, ante­câ­mara da morte, aflito, o aus­tríaco des­dra­ma­ti­zou: “Bogie, esquece. Caramba, já sabes que o cinema não é bem a corte da rai­nha de Ingla­terra, pas­sa­mos o tempo a esfaquearmo-nos.”

Se o heroísmo de Bogart, nos fil­mes, nunca con­ven­cera o desin­gé­nuo pes­si­mismo de Wil­der, comoveu-o, nesse momento, a dig­ni­dade do homem que se des­pede. Wil­der viu um homem a reconciliar-se com o mundo, enquanto lutava, numa cama, com um insi­di­oso gangs­ter que lhe cor­rom­pia e sufo­cava o esó­fago. Já sem meto­ní­mia, Wil­der disse, então, de Bogart o que tinha a dizer: “Era muito bom, era melhor do que aquilo que ele pró­prio pen­sava.

Ai de quem não tenha ini­mi­gos. Deus nos dê os gigan­tes­cos ini­mi­gos de cuja vio­lenta boca saia a pala­vra que res­gate a nossa humana e apa­gada vil tristeza.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

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