Detestava Hemingway e Huston sabe Deus

zzjohnford

John Ford detes­tava Hemingway e gos­tava razo­a­vel­mente da escrita com­plexa de Faulk­ner. O irlan­dês Liam O’ Flaherty era o seu escri­tor favo­rito. Era primo dele e Ford adaptou-lhe um romance de cora­gem e dela­ção, o The Infor­mer. Em Hemingway, o incó­modo vinha do lou­vor fácil a uma certa mito­lo­gia mas­cu­lina, estra­nha a Ford.

Coe­rente com esse gosto lite­rá­rio é o seu gosto ciné­filo. Ford, que ado­rava Leo McCa­rey, Frank Bor­zage, Raoul Walsh e Sam Ful­ler, não gos­tava de John Hus­ton: “Um mala­ba­rista.

Num jan­tar, uns fran­ce­ses disseram-lhe: “Hus­ton com­prou um cas­telo na Irlanda.” Ford olhou para eles como se esti­ves­sem a falar de um alien, de um Antó­nio José Seguro. “O quê?” E os fran­ce­ses a ten­ta­rem pro­nun­ciar Hus­ton de boqui­nha mais fechada, boqui­nha mais aberta, “Hus­ton… Aston… Iús­ton”, a aspi­rar o agá até ao per­di­goto. Ford deu-lhes guita, o ar plá­cido de quem não sabia pevide do que esta­vam a falar. Quando achou que era de mais, interrompeu-os e disse, matando a con­versa: “Não é um cas­telo, é uma casa.

Hemingway e Hus­ton são exem­plos da lite­ra­li­dade que o abor­re­cia ou não tivesse esco­lhido autodefinir-se nes­tes ter­mos con­tra­di­tó­rios: “Sou um rea­li­za­dor de comé­dias que faz fil­mes tris­tes.

O pro­du­tor Daryl Zanuck, durante as fil­ma­gens de Drums Along the Mohawk, andava doido com ele. Que­ria uma cena de bata­lha que tivesse ingre­di­en­tes espec­ta­cu­la­res – cava­los, índios, canhões, duplos, figu­ran­tes, guarda-roupa. “Jack, temos de pla­ni­fi­car a cena. Vai dar-nos um mês de tra­ba­lho. Esta­mos atra­sa­dos.” E Zanuck caía-lhe em cima, semana a semana.

Um dia, Zanuck chega e volta à carga com a bata­lha. “Filmei-a ontem”, disse-lhe Ford. E tinha-a fil­mado. Cha­mou Henry Fonda, então seu filho dilecto, e disse-lhe: “Já estu­daste a pla­ni­fi­ca­ção da cena de trás para a frente, umas cem vezes. Encosta-te ali àquela parede.” Man­dou o ope­ra­dor pre­pa­rar a câmara, gri­tou acção e, a seguir, per­gun­tou a Fonda: “Como come­çou a bata­lha?” Fonda ia falando. De vez em quando, Ford fazia-lhe per­gun­tas: “E Joe? Mor­reu?” Fonda res­pon­dia. No fim, Ford pediu ao mon­ta­dor para cor­tar as per­gun­tas e ligar o dis­curso de Fonda. Em enqua­dra­mento fixo, pla­nos lon­gos, um homem fala e, pala­vra a pala­vra, a cru­eza, a bar­bá­rie de uma bata­lha entra-nos pelos ouvi­dos e incendeia-nos os olhos. É uma elipse e não é uma elipse.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

Drums Along the Mohawk no Brasil é Ao Rufar dos Tambores.

 

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