Conhecia-a porque o João Bénard a conhecia. O João, meu director, falava dela e, sem a vermos, já a víamos. Deliciava-nos com as excentricidades dela, assustava-nos com as fúrias dela. Eram os anos 80, estava eu na Cinemateca Portuguesa, que era como se fosse irmã gémea da Cinemateca Francesa.
Na Cinemateca Francesa estava ela, Madame Meerson, para nós, num tu cá, tu lá de amantes das sombras, a Mary Meerson. O João autorizou-me a telefonar-lhe. Falei com a voz rouca dela. Foi uma Marlene Dietrich maternal. Ouvi muito bem que estava deitada na cama. Imagino um leito gigantesco, o seu corpo obeso, uma dessas rainhas voluptuosas que, com uma só dentada, comem um ou dois súbditos.
Nessa altura, já não saía da cama, de que fazia a sua Sala Oval. Não suportava era a calada da noite. Espantava a lua, sacudia o acentuado arrefecimento nocturno, falando ao telefone. Ligava para a América, para a Rússia, para a China, acordando cineastas, actores, ministros, um presidente, até. Caía a noite e havia, em todo o mundo, telefones que se encolhiam com medo dessa voz imperativa que falava russo, búlgaro, francês, inglês, italiano, alemão, iídiche, mandarim e sânscrito.
Mil e um telefonemas, mil e uma noites. Donde vinha essa voz? Vinha do céu e do inferno e dizia: “Mary Meerson não existe. Eu sou a Xerazade.”
A russa que ela era, tinha passado a exilada e apátrida, nos anos 20. Dançava nos Ballets Russes de Diaghilev, sem papéis de identidade. Nunca ninguém soube quando nasceu. Nos mais loucos anos do século XX, viveu em Paris, entre artistas. Já fazia parte da pintura – pintou-a Oskar Kokoschka – quando Lazare Meerson, mítico decorador do cinema francês, a tirou de desenhos e cavaletes e lhe mostrou o cinema. Mary viveu com ele uma vida extravagante – hoje em dia pensamos logo em sexo e drogas, mas uma vida extravagante é, antes, um prodígio de imaginação e fausto, de estética e arrogância, de desmedida alegria e solidão. Com sexo e drogas, porque não!
Foi na curva descendente dessa extravagância, desse fausto, que lhe morreu Lazare Meerson. Dois anos depois, 1940, Mary conheceu Henri Langlois. Até ao fim da vida nunca mais se desconheceram. Juntos salvaram o cinema. A Europa teve, nos anos 40, uma ferida que ardia muito e queimava filmes. No meio da França nazi, de guerra e chamas, de delação e clandestinidade, Meerson e Langlois salvaram milhares de filmes. Esconderam-nos em todo o lado, caves, castelos, debaixo da cama.
Depois da guerra, o cinema pagou-lhes com amor. Cineastas e produtores, actores e argumentistas beijaram-lhes as mãos, beijaram-lhes os pés e, talvez, digo eu, algumas vezes a boca. Mereceram todos os beijos. Beijos que deram muitos filhos: “les enfants de la cinémathèque”, godards, truffauts, os meninos de Mary Meerson.
A foto é de Cartier Bresson. O desenho, de Oskar Kokoshka.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.