Nota: Este interessantíssimo conto amoral que minha avó contou, certamente junta pedaços de diversas histórias. As três primeiras peripécias parecem sair das aventuras de um Pedro Malasartes ou um Till Eulenspiegel.
A última aventura, a do palácio, é bem mais intrigante, com uma intromissão de uma feiticeira negra, provavelmente uma interpolação feita no Brasil. Esta historinha foi a verdadeira causa de eu ter resolvido anotar os contos. A última parte eu nunca tinha lido em lugar nenhum e achava que seria uma perda não fazer o registro. Em 2008 tive uma gratíssima surpresa, ao ler um livro importantíssimo para a História da Humanidade e encontrando a versão que, com toda certeza, é a original.
Como o conto é meio longo, dividi-o em três partes. Ao final vou apresentar, como quarta parte, uma tradução do texto antigo. Um pouquinho de suspense vai ser bom.
***
Era uma vez um homem que tinha três filhos e algumas filhas.
Aí um dia ele chamou os três filhos e falou:
– Meus filhos, estou ficando velho, não somos ricos e vocês estão em idade de trabalhar. Cada um vai escolher um oficio e vou mandá-los pelo mundo e vocês voltarão quando souberem trabalhar.
O mais velho falou:
– Meu pai, eu quero ser alfaiate.
O velho falou:
– Então, você vai seguir por esse caminho e no fim do caminho tem uma casa onde mora um alfaiate e ele vai te ensinar.
O filho pegou suas coisas, a mão fez uma matutagem e enrolou num pano. Ele foi embora.
O segundo filho falou:
– Meu pai, eu quero ser padre.
Aí o velho falou:
– Então, você vai levar um cabrito pro padre e vai dizer que eu mandei você até lá, pra aprender a rezar missa e batizar e crismar e confessar.
O filho pegou suas coisas, a mãe fez uma matutagem e enrolou num pano. Ele foi embora, levando também o cabrito.
Só sobrou o terceiro filho e ele falou:
– Meu pai, eu quero ser ladrão.
Quando o velho ouviu isto brigou muito e a mãe começou a chorar. O velho pegou uma vara de marmelo e deu uma sova no filho.
No dia seguinte o velho chamou o filho e perguntou o que ele queria ser e ele disse que queria ser ladrão.
A mãe chorou mais ainda e as irmãs também e o velho pegou um chicote e deu outra sova no filho.
No terceiro dia perguntou novamente o que ele queria ser e ele disse que queria ser ladrão.
A mãe chorou mais ainda e as irmãs também mas o pai viu que não adiantava mais bater e falou:
– Bem, não adiante mais te bater. Você vai sair pelo mundo e procurar quem vai te ensinar este ofício. Mas não quero que volte para casa.
Aí a mãe preparou a matutagem, enrolou com pano de prato e o filho foi embora.
Ele andou e andou e a fome bateu e ele sentou e comeu. Andou e andou e a fome bateu outra vez e ele comeu e só ficou um restinho da matula. Aí ele andou o resto e a fome bateu de novo e ele comeu e acabou a matutagem. Então ele bateu numa casa à beira do caminho. Veio uma velha. Ele disse que queria pousada e ela deu.
De noite chegou o filho da velha e perguntou o quê que ele queria e ele falou:
– Eu quero aprender o ofício de ladrão.
O filho deu uma gargalhada. Depois disse que ia ensinar a ele tudo sobre o ofício.
Aí ele ficou morando com a velha e o filho dela que era um refinado ladrão. Passado algum tempo ele já conhecia tudo. Já era um moço forte. Já sabia todos os modos de roubar. Aí o ladrão mestre chamou ele e disse:
– Bom, quero ver se você aprendeu mesmo o ofício. Se aprendeu, você irá embora. Se não aprendeu, ficará comigo mais um ano. Repara no alto daquele galho. Tem um ninho. Dentro daquele ninho tem um passarinho. É a fêmea e ela está chocando três ovinhos. Vou subir devagarinho e você vai comigo. Vou levar esta tesoura e este canivete e vou roubar os ovinhos por baixo do ninho e o passarinho não vai desconfiar. Aí vamos descer e você fará o mesmo com outro ninho. Se conseguir, quer dizer que é um ladrão mestre, como eu.
Aí o ladrão foi subindo devagarzinho e ele foi atrás. Avançavam sem barulho e o passarinho não desconfiou. O ladrão, com muito vagar, começou a cortar as palhinhas do ninho e foi indo e foi indo e acabou por fazer um furinho e o pássaro nem desconfiou. Aí ele enfiou o canivete e foi mexendo e foi mexendo e acabou tirando um ovinho. Colocou com muito cuidado no bolso da camisa e começou a tirar o segundo ovinho. Tanto fez que acabou tirando e a fêmea continuou chocando. Este segundo ovinho ele colocou no bolso de trás da calça, que era pra não quebrar, batendo no outro. Aí ele continuou e sempre de mansinho ele tirou o terceiro ovo. Colocou no outro bolso de trás e mexeu na palhinha do ninho, pra não chamar a atenção do passarinho. Fez um sinal com a mão e o aprendiz começou a descer e ele também.
Chegaram lá em baixo. Estavam inteiramente suados. O mestre riu e falou:
– Viu como se faz? Quero ver quem é mais ladrão do que eu!
E enfiou a mão no bolso e levou um susto. Não tinha nada. Olhou o outro. Nada. O outro. Nada.
Aí o aprendiz tirou de seus bolsos os três ovinhos e mostrou. O ladrão ficou desacorçoado e falou:
– Não tenho mais nada que te ensinar e é melhor que você vá embora antes que a gente brigue. Porque, enquanto eu roubei do animal, você roubou de mim.
Aí o moço resolveu ir embora e o ladrão lhe deu muito dinheiro. Ele comprou presentes para o pai e para a mãe e para as irmãs e não se lembrou dos irmãos. Foi indo e foi indo.
Aí ele escutou um berro de cabrito e se escondeu. Viu passando um arigó com um cabrito bem gordo. O ladrão entrou por um atalho e deixou num ponto da estrada um pé de chinelo bem novinho, que ele tinha comprado. Correu mais à frente e deixou o outro pé e se escondeu.
Quando o arigó viu o primeiro pé de chinelo, pensou:
– Que pena! Tão novinho mas é só um. Não adianta pra nada.
Foi andando e andando e encontrou o outro pé de chinelo. Aí ele pensou:
– Ah, é igualzinho aquele que ficou lá atrás. Vou amarrar o cabrito numa árvore e voltar pra pegar o outro chinelo.
Aí o arigó amarrou o cabrito, pegou o chinelo e foi buscar o outro pé.
O ladrão pegou o cabrito e sumiu que se verteu.
Foi-se embora com o cabrito e andou muito e noutra parte da estrada ouviu um berro de carneiro. Aí ele amarrou o focinho do cabrito, que era pra ele não berrar, amarrou o cabrito na árvore e se escondeu no mato.
Viu passando outro arigó com um carneiro gordo e felpudo. Aí ele correu até um ponto bem espinhento e berrou que nem um carneiro. O dono do carneiro pensou:
– Oba, outro carneiro. Vou amarrar o meu aqui e procurar este que está perdido e fico com dois.
Mas, enquanto ele foi no mato o ladrão correu na estrada, pegou o carneiro e saiu correndo, levando também o cabrito.
Aí ele andou e andou e chegou em casa. O pai perguntou o que ele tinha aprendido e ele disse que tinha aprendido o ofício de ladrão. O pai brigou muito mas vendo o cabrito e o carneiro e o tanto de dinheiro, resolveu não reclamar mais.
Assim, o filho ficou morando com o pai e o dinheiro durou muito e muito tempo.
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