Conta outra, vó – A morta-viva

Nota: O sepultamento de pessoa ainda viva, tendo os sintomas de morta, sempre foi tema de narrativas terríveis. Allan Poe (1809-1849), como não podia deixar de ser, tem duas (Premature Burial e The fall of the House of Usher); na introdução da primeira, ele apresenta casos famosos em sua época. Numa novela cheia de emoções, Selma Lagerllöf (1858-1940) também narra a história de uma moça que acaba sendo resgatada do sepultamento (En herrgårdssägen -1899).

Uma observação que cabe aqui, também, é de como eram simples os contos de minha avó. Os analfabetos contavam e recontavam as historinhas e aos poucos ela se reduzia a uma matéria prima nua e crua, mantendo intacta apenas a essência do acontecido.

***

Era uma vez… um fazendeiro tinha uma filha. Ele era um viúvo muito rico e tinha muitos escravos e escravas e gado. Ele só tinha essa filha e gostava muito dela. Ela estudava música, ele trazia professores do litoral, e ela ia ficando prendada.

Vai que um dia a moça morreu. O fazendeiro ficou apaixonado e quase morreu de desgosto. Mandou fazer uma mortalha branca, muito rica, e pediu uma coroa de flores de laranjeira e um buquê e um véu de noiva. Naquele tempo as moças que morriam virgens não eram enterradas de roxo mas iam com uma mortalha de noiva, muito branca e muito linda. Aí o fazendeiro mandou que colocassem no caixão todas as jóias que eram da familia porque já não tinha mulher e nem filha e não queria vender nada daquilo.

Então as velhas lavaram a defunta, pentearam os seus cabelos, vestiram a mortalha que era o vestido de noiva e colocaram o buquê na mão dela e o véu na cabeça e a grinalda por cima do véu. Depois colocaram na moça as pulseiras e os colares e os anéis e os brincos.

Ela mais parecia uma filha de reis, de tão maravilhosa que ficou.

Então vieram todos da fazenda e os das fazendas vizinhas e a casa se encheu de gente e os escravos mataram porcos e galinhas e todos conversaram a noite inteira.

Naquele tempo as velhas não abandonavam o defunto um pouquinho que fosse. Ficavam tirando a ladainha e quando uma começava a chorar, todas choravam. Elas eram as carpideiras.

Assim foi toda a noite, uns rezando, outros comendo e o velho viúvo apaixonado não sabia mais o que fazer.

Chegou de manhã e o corpo já ia pro cemitério. Na hora de fechar o caixão, o velho quase arrancou os cabelos de tanta paixão. E todos passaram pra olhar a virgem morta pela derradeira vez. Aí fecharam o caixão. Veio a banda de música, começou a tocar um dobrado de enterro, os amigos seguraram o caixão e foram levando pro pequeno cemitério. Na frente ia o padre e a banda tocando e atrás ia o caixão. O velho ia seguindo, vestido de preto e com o chapéu na mão. Atras dele iam as carpideiras, depois o povaréu, homens, mulheres, crianças, e até os cachorrinhos iam seguindo, uns latindo e outros não.

Chegaram no cemitério, a covinha já estava aberta e o padre benzeu o caixão. Os coveiros enfiaram o caixão dentro do buraco e todos jogaram cal. O velho homem quase morreu de paixão e os amigos tiveram que amparar ele até em casa.

Nisto veio a noite e na noite aconteceu o seguinte:

        Dois ladrões tinham visto a moça dentro do caixão e combinaram roubar aquelas jóias todas. Tinha que ser naquela mesma noite porque depois ela ia começar a apodrecer. Quando tudo escureceu, eles foram até o cemitério e começaram a cavar. Logo bateram no caixão, desenterraram ele e começaram a arrebentar a fechadura. Aí abriram e começaram a tirar as jóias. Estava tudo escuro. De repente, ouviram um arroto. Eles se assustaram e pararam, vigiando a defunta. Um novo arroto e o braço se mexeu, depois o outro, a perna, e quando eles viram a defunta sentada dentro do caixão, saíram correndo feito loucos numa disparada como nunca tinham corrido.

O que aconteceu é que a moça não tinha morrido. Ela tinho tido um ataque desses muito fortes e esse ataque durava muito tempo e a pessoa parecia morta de verdade. Ela deu sorte deles terem aberto o caixão bem na hora de ter acordado, senão ia morrer enterrada viva. Aí ela levantou e saiu pra pedir ajuda. Chegou na porta da igreja e bateu. Bateu de novo. Bateu com mais força. Quando o sacristão abriou a porta e viu ela de noiva, se borrou todo e foi chamar o padre:

– Seu padre, seu padre, aquela moça que nós enterramos hoje está lá fora.

O padre foi e levou a lamparina e ela estava chorando e dizendo:

– Eu não morri, eu não morri…

E o padre deu um cobertor pra ela se enrolar e foram gritando pela rua afora.

O povaréu acordou e seguiu, também gritando, e quando acordaram o fazendeiro, ele não entendeu nada. Abriu a janela e viu a filha de pé, no meio da gentarada, começou a chorar feito criança e correu e abraçou a filha e as pessoas todas conversaram e riram cheias de nervoso até a madrugada.

Aí o fazendeiro entendeu o que tinha acontecido e mandou reunir todo o povo da cidade e das fazendas e disse que queria dar uma recompensa pros ladrões. Por que tinha sido por causa dos ladrões que ele tinha a filha novamente. Ele esperou e esperou e os ladrões ouviram tudo aquilo mas, de medo, não apareceram.

O viúvo e a moça ainda viveram muito tempo.

 Do livro Conta Outra, Vó, por Jorge Teles. 

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