Nota: Esta última historinha vem trazer a minha coletânea um tema muitíssimo repetido na literatura popular: uma disputa com o Diabo. Este tema tem lá suas variantes mais nobres e cheias de filosofia, até o seu tanto de metafísica; os dois exemplos mais fantásticos são o Livro de Jó, do Velho Testamento e o Fausto de Goethe (1749-1832).
No caso dessas variantes mais nobres, não é o personagem que faz a aposta com o Diabo mas, estranhamente, o próprio Deus. Jó e Fausto são as vítimas da disputa, cada um simbolizando a cultura de sua época.
A historinha contada por minha avó é uma de muitas que correm o Brasil. Na maioria delas, é a mulher que consegue o estratagema para vencer o Diabo, inconsciente remissão do pecado da pobre Eva, que caiu na tentação primeira. E na maioria, são historinhas com fundo erótico. Tudo a ver.
***
Um homem muito pobre já estava cansado de passar necessidade. Um dia o Diabo apareceu e fez uma proposta:
– Se quiser ficar rico, vamos fazer um contrato. Você vai ganhar dinheiro e ter saúde a partir de amanhã. Daqui a um ano voltarei. Se você me apresentar um trabalho que eu não consiga fazer, sua alma ficará livre e você continuará com todo o seu ouro. Mas se eu conseguir resolver o trabalho proposto, então levarei sua alma para os confins dos confins.
O homem nem pestanejou. Achou que o prazo de um ano era suficiente para ele encontrar uma tarefa que o Diabo não conseguisse fazer. Disse que sim. O Diabo, num estouro de fumaça e cheiro de enxofre, desapareceu.
No dia seguinte começaram os milagres. A mulher dele recebeu a visita de um homem da cidade, dizendo que ela tinha uma herança. O filho brincando no quintal encontrou enterrado um baú de ouro. E ele mesmo, indo pescar, encontrou à margem do rio uma bolsa cheia de dinheiro.
Ah, que felicidade. A vida dos três mudou e o homem acabou esquecendo do contrato feito com o Diabo, como se sua riqueza fosse de fato por acaso.
O tempo passou.
O tempo passou mais um tanto.
O tempo passou mais outro tanto.
Um dia ele teve um pesadelo e acordou suado. Sonhou com a cara do Diabo respirando um ar quente junto da sua cara. De repente, lembrou-se de tudo.
– Que dia é hoje?
A mulher falou:
– Ora, então não sabe? Falta uma semana para o domingo da páscoa.
O pobre homem saltou da cama e começou a andar pra cá e pra lá. A mulher quis saber o que acontecia mas ele não falou.
Passaram-se seis dias. Ele caiu doente. A mulher já não sabia o que fazer. Na meia-noite do sábado antes da páscoa, ele não resistiu e contou tudo.
– Vou morrer amanhã ao meio-dia. Ele vai aparecer e me levar. Que coisa eu poderia pedir que ele não conseguisse fazer? Se para Deus tudo é possível, para o Diabo há de ser igual.
A mulher ficou muito triste. Mas falou:
– Você devia ter me falado antes. Duas cabeças valem mais que uma. Agora, além de viúva com um órfão, perdemos o dinheiro.
E pôs-se a andar de lá pra cá. De repente, gritou:
– Já sei! Já sei! Deixa comigo. Vou apresentar ao Diabo uma tarefa impossível.
Bateu meio-dia e os dois esperavam sentados na cama. O Diabo bateu elegantemente na porta e esperou. A mulher mandou entrar.
– Quero falar com seu marido. Temos hoje um trato a cumprir.
– Entre, cavalheiro. Sente-se.
O Diabo sentou-se, escondendo debaixo da cadeira os pés de bode, que ele tem vergonha de mostrar.
O homem veio andando devagar até a sala. Sentou-se perto do Diabo. A mulher disse:
– O senhor sabe que homem casado com mulher é como se fosse uma só pessoa, se se uniram em matrimônio perante a lei de…
O Diabo interrompeu rápido:
– Não gosto de falar nisto. Mas concordo.
– Então, se eu apresentar a tarefa é como se fosse o meu marido.
– Exatamente, falou o Diabo com educação.
– Então, toma lá.
A mulher enfiou a mão dentro da roupa, fez
tóim
e arrancou um cabelinho, desses que os adultos têm lá embaixo do umbigo, vocês sabem do que estou falando.
– Estique isto mas não pode destruir.
Primeiro o Diabo não entendeu. Olhou o cabelinho encaracolado, todo enroladinho, soltou uma gargalhada e pegou o fio de cabelinho.
– É pra já.
Mas ele não conseguiu. Ele esticava, mas o cabelinho voltava que nem mola. Está lá até hoje, esticando. Não pode esquentar, se não o cabelinho queima. Coitado. O Diabo perdeu.
O casal continuou rico e feliz e ricos e felizes foram para sempre.
Continue contando Jorge, histórias da vó, histórias suas, não pare nunca!