Toda a morte no cinema tem os paroxismos do “Adagio” de Albinoni. Um aviso: estou a pensar na morte dos actores, na verdadeira morte de cada um deles, que é o último filme que fazem.
John Wayne morreu como quis. Tinha um cancro e fizeram um filme para ele morrer na glória do mito com que a mente, o coração e o corpo dele já se tinham fundido. Em The Shootist, Wayne era um cowboy, um pistoleiro. Nas cores com que, nesse filme, Don Siegel o vestiu, desaguavam o magnífico Wayne de Red River e Rio Bravo, o velho cansado de The Searchers” e The Man Who Shot Liberty Valance”. Jimmy Stewart fazia de médico e diagnostica-lhe, no filme, o cancro que já lhe consumia a vida. Wayne não se resigna à dolorosa espera e escolhe morrer no dia do seu aniversário, a tiro, num combate desigual com três outros pistoleiros. Vemos Wayne morrer, baleado, no chão de um saloon e vemos o western morrer com ele.
Talvez Marlon Brando devesse, também, ter morrido logo a seguir a Apocalypse Now, mas os deuses, que tanto estimavam James Dean, embirravam com ele e castigaram-no com mais 24 anos de vida e dez filmes imprestáveis. Brando devia ter morrido no filosófico e pesado corpo do coronel Kurtz, desfeito à catanada pelas novas gerações que Martin Sheen representava, como quem, não querendo a coisa, mata o pai.
Esta conversa fúnebre trago-a à colação por ter visto, há umas semanas, o A Most Wanted Man com o entretanto falecido Philip Seymour Hoffman. Parece que não é o seu último papel – há um póstumo e inacabado The Hunger Games, em que será digitalizado. Digitalizem o que quiserem, pouco interessa, A Most Wanted Man é o filme em que os espectadores podem ver o ruivo e descuidado Hoffman a dar um cansado, resignado e esplêndido passo para a cova.
Philip Seymour Hoffman dá corpo a um inspector da secreta alemã em roda livre. O que alimenta a sua liberdade é um pessimismo do tamanho de Deus, uma alma moribunda mal agarrada a uns sufocados restos de velha moral. A sua personagem só tem uma fé, a fé na decepção, traição e sordidez humanas. Mas será a personagem? Na verdade, olha-se para o filme, olha-se para a suada gordura alemã de Hoffman e já não sabemos se a respiração de bicho acossado é a da personagem ou se é mesmo a dele. Sabemos é que este é um homem que vai morrer.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
The Shootist no Brasil é O Último Pistoleiro. Red River é Rio Vermelho mesmo. Rio Bravo é Onde Nasce o Inferno. The Searchers, Rastros de Ódio. The Man Who Shot Liberty Valance, O Homem Que Matou o Facínora. A Most Wanted Man, O Homem Mais Procurado.