Canalha, cretino, cafajeste…

É claro que você já esbarrou nele. Todos o fizemos, voluntária ou involuntariamente. É onipresente e na maior parte do tempo ostenta um sorriso com variações de moldura: ora ligeiramente encoberto por um espesso bigode, ora calculadamente pendurado no canto da boca desenhada em um rosto bem escanhoado. Habitualmente mantém a postura irrepreensível com roupas de corte perfeito, mesmo que seja um descorado jeans. Tudo nele é calculado.

Carly Simon, em “You’re so vain”, o descreve com rara maestria. A diva pode ter convivido com alguns por longo tempo, o que lhe deu subsídios para perceber detalhes que passariam ao largo de olhos menos astutos. Carly Simon nos dá dicas de como reconhecê-lo à primeira piscada. Se não, vejamos (em tradução livre):

You walked into the party

(Você chegou à festa)

Like you were walking onto a yacht

(Como se estivesse entrando num iate)

Your hat strategically dipped below one eye

(Seu chapéu estrategicamente caído sobre um olho)

Your scarf it was apricot

(Seu lenço era abricó)

You had one eye in the mirror

(Você tinha um olho no espelho)

As you watched yourself gavotte

(Enquanto se via dançando)

And all the girls dreamed that they’d be your partner…

(E todas as garotas sonhavam em serem suas parceiras…)

…e acredita, ou melhor, tem certeza de que tem à disposição tudo o que precisa para um final de festa adequado.

Carly Simon não revela a identidade do “cantado”; ela o apresenta como um resumo dos homens que passaram com maior ou menor intensidade em sua vida – hoje aos 67 anos. Também não tenho a menor intenção de identificá-lo. O paciente leitor deste escrito pode desenhar a melhor, ou as melhores imagens que se apresentarem. Com as devidas autorizações, se um Frankenstein aparecer, isto será de inteira responsabilidade de quem o visualizou. Dito isto…

Ele foge de qualquer responsabilidade. É sagaz e evita riscos como um animal a pressentir o perigo. Nunca é pró-ativo, mas está sempre ao lado de quem lhe possa gerar qualquer tipo de benefício. É um entusiasta da vanguarda, de ações arrojadas, de projetos pioneiros, conceituais e outras novidades das quais apenas ouviu comentários rasos como poças na calçada e os repete com a ênfase de um mestre.

Desde cedo aprendeu a não demonstrar qualquer tipo de emoção na adversidade, por maior ou menor que seja. A maioria de seus atos pode ser explicada; às vezes eles podem ser compreendidos, mas nunca justificados. Uma infância penosa, em função de um lar mal estruturado; um pai apenas preocupado com o provimento; uma mãe voltada exclusivamente para a criação da prole e, por ser mais um dentre tantos, carente de um afago nos cabelos, ou mesmo de um sorriso mais terno diante de uma ação surpreendente para uma criança. Calos invisíveis na alma bloqueiam lembranças de uma adolescência – como de resto – incompreendida. Decisões tomadas sem supervisão o levaram a adotar critérios muito pessoais sobre as mais diversas situações, nem sempre a par do senso comum, mas especialmente destinadas à própria sobrevivência. Sim, um solitário por excelência.

A linguagem corporal das celebridades televisivas, seus trejeitos e poses de personagens de folhetins atentamente observados e melhor absorvida o ajudam nos contatos do dia a dia. Cauteloso, jamais lhes autentica a origem. Assim, estampa aquele sorriso plástico quase permanente e ao se movimentar de um lado para outro sugere o andar de um ator famoso ou, cabisbaixo, cria o momento próprio do olhar terno de um adolescente desorientado. Se colar, colou.

Suas relações sociais nem sempre estão atreladas à ocupação que lhe dá o sustento mínimo. Certa vez ouviu dizer que ser dono de um significativo saldo médio bancário proporciona créditos com o gerente de sua conta pessoal “porque na hora de um aperto uma mão lava a outra…”. E o telefone celular de última geração o protege de possíveis traições do portador de seu cheque datado de um mês. Aliás, ter dinheiro é essencial para ele. Esse “ter” ajuda a esquecer o nicho onde guardou, muito bem escondidos, o vento frio do inverno rigoroso, a pouca e rala roupa, a comida racionada e a falta de explicações razoáveis para tanto sofrimento da numerosa família. Foi uma boa infância; poderia ser melhor, mas é bom deixá-la lá, escondidinha.

Está sempre à procura de uma oportunidade onde possa obter, ganhar, barganhar ou mesmo comprar uma peça de griffe que o destaque nos lugares que freqüenta. Sim, porque freqüentar é vital. Como o ar – poluído ou não – que respira avidamente, recorre a todo tipo de estratagema para se fazer presente em qualquer ambiente, sempre com a mesma desenvoltura. Recolhe informações em potins de colunas destinadas aos descolados ou milionetes instantâneos, como ele, ávidos por segundos de fama e exposição. Não há lugar que o constranja. Está tão à vontade numa roda de samba de raiz como num baile apresentação do grupo de dança de rua do bairro. Adotou a complacência como forma politicamente correta de enfrentar e entender a diferença e a diversidade. Não, não carrega bandeiras, ainda que em momentos de enormes vazios solitários lhe aflorem desagradáveis imagens de abuso sofrido na inocência. Odeia, repele, irrita-se ao contato sem o demonstrar. Sorri e se despede. Seus pensamentos são seus, apenas.

Tem o hábito de se reunir com amigos para botar a conversa e os recordes em dia, afinal, boi preto conhece boi preto. Sobressaiu-se na rodinha porque apresentou ao grupo um ditado recolhido durante a viagem em que atuou como ajudante no carregamento e transporte de laranjas a bordo da boléia de um pesado pelo interior do Rio Grande do Sul:

“Avião é Cesna; Carro é Jeep; mulher é qualquer uma.”

O dito foi aclamado e repetido à exaustão entre copos e mais copos de cerveja estupidamente gelada. Naquele final de tarde, início de noite promissora, terminou o banho, olhou-se no espelho, aplicou uma generosa camada de hidratante no pinto e piscou: “Hoje você vai trabalhar!”

As atitudes assumidas com o sexo oposto – sim, para ele há apenas homem e mulher; macho e fêmea, pai e mãe – são reveladas apenas quando já está cansado da sempre eventual parceira. O romance raramente é “amor à primeira vista”. Ao contrário. Predador, ele se faz insinuar sem o esforço do pegador. Tem o cuidado de estudar hábitos, modos, gostos, gestos e tiques, de forma a surpreender pela educação, gentileza e principalmente pela cortesia. Aparece sempre de forma casual nas horas solitárias da presa e a surpreende com o melhor sorriso e o comentário certo. Duas ou três ocasiões são suficientes. Às vezes, menos. Ou nem isso. Encantada, ela sucumbe.

A ele pouco importa se há alguém no caminho. Seduz e produz um relacionamento tórrido pelo tempo que lhe agrade a novidade. Vai-se com vem; sem aviso, sem explicações ou desculpas. Ele chama isso de “exercício de liberdade de ir e vir”, já que qualquer comprometimento é impensável.

Nos momentos de calma e solidão pai e mãe lhe fazem visitas; às vezes bem-vindas, outras, nem tanto. Aparecem num estalo os perrengues entre pai e mãe. Ela, fragilizada pela saúde precária e ele, ex-atleta. No mais fundo de suas memórias há lampejos de uma mulher combalida a lamentar o infeliz indissolúvel. Ela nunca foi explícita, mas ouviu que poderia ser outro o protagonista, com o mesmo porte, em outro país, em outro hemisfério. Resignou-se. “Tenho a impressão de que você me quer morta”, ouviu certa vez. Adolescente, foi aconselhado pelo pai: “case-se com mulher que tenha boa saúde.” Entendeu então o motivo das ásperas discussões, o emprego noturno, as idas solitárias em visita ao velho pai em Santana. Fantasmas de uma infância sofrida que o atormentam de tempos em tempos e insistem em lembrá-lo de sua fraqueza.

Um dia, possivelmente, sofrerá um choque de decência, humanidade, caráter, humildade e terá seu disfarce revelado. Estará nu. Ele o permitirá?

José Guido Fré é jornalista. 

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