Lá pelo final dos anos 50 do século passado, depois de um período internado na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, voltei para a casa de meus pais. Nessa quadra da minha vida, aproveitando o tempo de internação, já fizera a primeira comunhão com o aprendizado do Catecismo católico, ensinado por padres e freiras, tempo em que ele era ainda ministrado quase todo em latim.
Logo que me acomodei, minha mãe, já sabendo que eu tinha razoável conhecimento dos sacramentos católicos, me intimou a rezar uma novena para Nossa Senhora Aparecida. O sucesso foi tamanho que não me contive e fui além da mera função de rezador. Passei a ministrar os sacramentos do batismo, casamento, crisma e até extrema-unção! Eu era visto como um fenômeno, pois abusava das palavras em latim e enrolava todo mundo com frases como Gloria in excelsis Deo, dominus vobiscum, omnipotens, habeas misericordiam nobiscum, ignoscas nobis peccata nostra et conducas nos ad vitam aeternam...
Terminada a construção da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, o bispado de Ribeirão Preto mandou para Guatapará frei Vitório Cestari, seu primeiro pároco. Qual não foi seu espanto, que depois virou desespero, quando soube das minhas estripulias como falso padre. Não deu outra: teve reparar aos olhos da Igreja toda a m… que eu fizera.
Certo dia ele apareceu lá em casa e comunicou à minha que pediria mina excomunhão, e que no crisma, marcado para três meses depois, certamente o chefe da diocese anunciaria o meu castigo: expulsão das fileiras da Igreja Católica Apostólica Romana.
Bom, a história acabou bem diferente. Frei Vitório não conseguiu minha excomunhão e um fato inusitado me salvou e impediu que minha mãe enfrentasse a vergonha de ver seu filho expulso das fileiras da sua religião.
Já há algum tempo eu morava e trabalhava em Ribeirão Preto. A manhã em que o chefe da diocese iria à minha vila ministrar o crisma e sacramentar a minha exclusão da religião católica, era justamente o domingo em que eu iria passar com minha família. Pedi carona a Orestes Lopes de Camargo, dono do jornal A Cidade, com quem fizera amizade. Sabia que naquele dia ele viajaria à vila para um encontro político. Aproveitando a ocasião, aceitou dar carona a dois amigos, um jovem deficiente e um velho de batina.
Figura bonachona, de uma simpatia irresistível, ele foi apanhar-me em casa com seu velho Ford. Ao entrar dei de cara com o bispo. No caminho, quando dom Luís lhe contou que, aproveitando a cerimônia do crisma, atenderia a um pedido do pároco da vila e pela primeira vez iria excomungar alguém.
Seu Orestes, a quem eu contara todas as falcatruas religiosas que praticara na minha vida pregressa de falso padre, me olhou de soslaio, encarou o bispo com seu sorriso matreiro e disse enfaticamente:
– Não vai não. O sujeito que você pretende excomungar é este meu amigo aqui. Ele não merece esse castigo, pois tudo o que fez foi por amor a Deus e ao próximo.
Terminado o sacramento do crisma, Frei Vitório ficou na expectativa de ver o bispo anunciar minha excomunhão. Veio o interminável beija-mão e quando se levantou, ele abençoou a todos e se preparou para ir embora. Parado na porta do velho Ford, seu Orestes zombava da cena e eu, ao seu lado, como que buscava sua proteção. Quando o bispo já ia em direção ao carro, Frei Vitório o questionou sobre a excomunhão. Dom Luís abriu um sorriso, pôs-lhe as mãos nos ombros e disse apenas:
– Esqueça, meu filho. Tudo foi feito em nome de Deus, com inocência e sem malícia.
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P.S.: Na madrugada de 3 de outubro de 1990, terminada a apuração dos votos que elegeu Ottomar Pinto primeiro governador do recém-criado Estado de Roraima, tive uma surpresa inesquecível. Estava numa roda de jornalistas, entre eles Alberto Helena e Sérgio Blakanos, já falecido, que vieram a Boa Vista comandar o marketing da campanha do João Lyra, ex-sogro de Pedro Collor, candidato ao Senado, quando me foi apresentado o advogado da coligação, trazido de Manaus. Espantado, Vitório Cestari me reconheceu, contou que fora padre em Guatapará e revelou a história da excomunhão. Foi uma gozação geral. Entretanto, minha vingança foi rápida. Perguntei-lhe por que ele havia fugido com uma das meninas mais bonitas da vila e deixara a Igreja de Nossa Senhora do Carmo sem nenhum tostão para ser advogado na capital manauara?…
Plínio Vicente é jornalista e cronista do cotidiano em Boa Vista.