Não sei se é a vida, não sei se é a morte, sei é que se vê tudo. Eu que dos morros da Gabela, numa manhã de cacimbo, julguei ter visto os arredores do infinito; eu que de um avião vi nascer o Sol no Sara e, de outro, vi a interminável brancura do Árctico, vi agora, num filme, esse tudo que é toda a terra, todo o cosmos.
Chama-se Gravidade e está nos cinemas. Vê-se tudo. Vê-se esse delírio que Deus e os astrónomos partilham, o luminoso e obscuro infinito. Vê-se tudo. Mas onde, senão na morte, se pode ver tudo?
E se disserem que já estou a desconversar, confirmo. Estou mesmo. Gravidade, o filme de Alfonso Cuarón, não é, como já não era o 2001, de Kubrick, um filme de ou sobre o espaço. Se 2001 era uma experiência de ressurreição, Gravidade é uma experiência de morte.
Cuarón começa o filme com uma sequência de 13 minutos sem cortes. Há três imaculados fatos de astronautas a flutuar, alegres e descuidados, à volta de uma estação espacial. Trabalham até que um acidente e sucessivas ondas de destroços matam um e isolam os outros dois, cortando as ligações com a mãe Terra e os outros humanos.
No insonoro espaço, dois astronautas vogam desarticulados e falam para o vazio. Vogam para lado nenhum, falam para uma Terra que não os ouve. Movem-se e falam para o nada. Um nada que nunca mais acaba e que não tem ouvidos.
Gravidade abre com esse plano-sequência de 13 minutos. Começa por mostrar três humanos em humilde ofício e acaba com o elogio do infinito. Também a morte deve ser um plano-sequência e agora dou conta que todos os cineastas do plano-sequência são cineastas da morte.
Angelina Jolie esteve para ser a protagonista. Um erro, como seria um erro ter Natalie Portman ou Scarlet Johannson. É Sandra Bullock, a admirável e operária Sandra Bullock, que nos mostra a esplêndida e fria morte. Morrer deve ser – só pode ser – ficar à deriva como ela fica, astronauta sem oxigénio a vogar pelo espaço, numa viagem interminável e aleatória. Bullock não consegue parar, o corpo rodopia e não há um corrimão, um muro contra o qual se vá. Não há portas, nem janelas, nesse nada tão grande, sem fim.
Se virem Gravidade, filme que precisa mesmo da experiência da sala de cinema, ficarão a saber que na vossa, como na minha morte, ouviremos ainda as indecifráveis vozes dos humanos – eles continuarão a falar, mas já não saberemos o que dizem – e há-de ladrar um cão.
Saibam os vivos que não há mortos no cemitério. Os mortos andam à deriva no cosmos e respiram tão aflitos como Sandra Bullock. Não voltarei a sonhar com o infinito, com a avassaladora grandeza das galáxias. Cerca-nos uma solidão filha da puta, uma imensidão em que, e vejam o filme, todos os olhos azuis são castanhos. Espera-nos um silêncio aterrador e um cão a ladrar no meio da nossa morte.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia
Valeu a dica, vou assisttr ao filme muito pela indicação do Manuel e mais bela Sandra Bulok.
Só espero assistir o mesmo filme que o Manuel, que sempre transcende.
Espero que não saia desiludido, meu caro Miltinho. A Sandra Bullock já me telefonou a dizer que está à sua espera. Abraço