Todos o queriam, todos o proibiam

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Mui­tas das coi­sas de que o nazi Joseph Goeb­bels gos­tava são coi­sas de que todos gos­ta­mos. Uma delas é o filme M, que outro ale­mão, Fritz Lang, rea­li­zou em 1931. A sen­si­bi­li­dade de Goeb­bels derreteu-se ao vê-lo no cinema. Num arroubo crí­tico, disse que as cor­das de vio­lino da sua alma vibra­ram, por se tra­tar “de um filme des­pido de sen­ti­men­ta­lis­mos huma­ni­tá­rios”. Antecipava-se assim, em qua­renta anos, a Michel Fou­cault, roubando-lhe a famosa tese da “morte do homem”. Fosse como fosse, Goeb­bels proi­biu o filme.

Ao mesmo tempo, o pro­du­tor Irving Thal­berg, que se Jesus Cristo fosse um CEO era então o Jesus Cristo da MGM, a maior fábrica de cinema ame­ri­cana, mos­trava o M aos mais ínti­mos cola­bo­ra­do­res. Disse-lhes no fim: “Genial. É esta geni­a­li­dade que pro­curo. Mas se alguém me pro­pu­sesse um filme sobre um assas­sino de cri­an­ças, cor­ria com ele, se é que não o matava.

Há cri­mi­no­sos que dão mau nome ao crime. Goeb­bels e Thal­berg perceberam-no bem ao ver M. Percebem-no tam­bém, na pele, os sin­di­ca­tos de cri­mi­no­sos, no filme. Em M, car­tei­ris­tas, assal­tan­tes, homi­ci­das, escro­ques, fal­sá­rios – a escu­ma­lha da Terra –, põem-se de pé, uni­dos, quando se des­co­brem víti­mas do mau nome com que os enla­meia Peter Lorre, actor pro­di­gi­oso, cara de bebé mau.

Peter Lorre incarna um pedó­filo, ainda que o filme elida o sexo, que só vemos em duas cenas magis­trais, amas­sado na cara ator­men­tada de Lorre, pri­meiro quando uma das pre­sas lhe foge, depois na sua con­fis­são no fim do filme.

Em M, Lorre esconde-se mais do que se mos­tra. Na pri­meira apa­ri­ção ouvimo-lo antes de o ver­mos. Um asso­bio – e quem o asso­bia? – faz-nos ouvir uma melo­dia do “Peer Gynt”. Até apa­re­cer a som­bra dele sobre o car­taz da polí­cia com os cri­mes infa­mes. De cos­tas, em silhu­eta, vago per­fil que asso­bia, vemo-lo pre­pa­rar o pri­meiro crime.

Filme do começo do sonoro, M inventa tudo: a nar­ra­ção em voz off, a asso­ci­a­ção de um tema musi­cal a uma per­so­na­gem. Para per­se­guir Peter Lorre, todos vigiam – a polí­cia, a popu­laça e os cri­mi­no­sos. Há milhões de olhos à pro­cura, mas quem o des­co­bre é um cego. Quem pri­meiro o vê são os ouvi­dos do cego que o reco­nhece pelo asso­bio. Um cego vê o que ouve e M é um filme para ouvir.

O cego agarra-lhe o assobio

O tra­vel­ling mais cri­mi­noso do cinema põe Lorre à frente de um júri de uma cen­tena de delin­quen­tes. Ver­da­dei­ros: 24 foram pre­sos a seguir. Vão julgá-lo. E é então que a ino­mi­ná­vel pul­são sexual jorra na sinis­tra cave: “É uma coisa malé­fica que me vem das tri­pas, um fogo, vozes, uma tor­tura”, con­fessa Lorre, inca­paz de tra­var o outro que tem den­tro de si. São todos cri­mi­no­sos: nin­guém o pode­ria com­pre­en­der tão bem e, no entanto, nin­guém sabe o que é ser como ele. Nem os fan­tas­mas das mães que gri­tam, à noite, na cabeça de Lorre. Há cri­mi­no­sos que dão mau nome ao crime.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

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