Sólo le pido a Dios

Muitíssimas vezes me peguei pensando que sou uma pessoa extremamente privilegiada. Tenho plena certeza disso. Tive, até aqui, uma vida muitíssimo mais cheia de coisas boas do que seria o normal de se esperar. Muitíssimo mais do que os sonhos mais loucos.

Hum… Em português não funciona tão bem a expressão. Far beyond my wildest dreams é mais belo.

Sou um homem feliz.

Para boa parte das pessoas, ser feliz é uma dor, um peso. Brecht tem um poema sobre isso, se não estou enganado. Diz algo tipo: como posso seguir vivendo, e comendo, e dormindo, se há tanta infelicidade no mundo?

O compositor Silvio Rodriguez sintetizou essa angústia em uma de suas belas canções, que Chico gravou encantadoramente: “Soy um hombre feliz e quiero que me perdonen por este dia los muertos de mi felicidad’.

***

Para muita gente, felicidade rima com culpa.

Se há tanta miséria, física e moral, no mundo, quem se descobre feliz – seja até por um breve instante – tem que se sentir culpado.

Como assim, ser feliz, neste mundo absurdamente feio, injusto?

Em seu poema que seria musicado pelo basco Patxi Andión, “Oda a Walt Whitman”, Lorca afirmava que “la vida no es noble, ni buena, ni sagrada”.

De onde se pode concluir que atribuir essa coisa da culpa inata, onipresente, apenas à civilização judaico-cristã é algo no mínimo questionável. Está aí esse bando de artistas não judeus e não cristãos para comprovar.

Já eu, remando na contramão de Brecht, Silvio, Chico, Lorca, Andión, e de boa parte dos grandes poetas que já pisaram na casca deste planeta, digo que sou um homem feliz, e não me sinto culpado por isso.

***

Fiz, ao longo da vida, todo esforço possível para não tornar o mundo ainda mais feio, mais injusto. Verdade que todo o meu pequenino esforço significa pouco mais que coisa alguma – mas o que me foi possível fazer, eu fiz. Si el mundo fué y será una porqueria, não foi por minha culpa.

Bem, pelo menos é o que eu acho.

Isso posto, vou ao que eu realmente queria falar.

Citando mais um argentino, pido a Dios não apenas que yo no sea indiferente. Indiferente à dor dos outros, aos absurdos todos, acho que não fui. Tive bem cheia a minha cota de indignação.

Ouso pedir mais.

O que peço a Deus (sendo muito, muito mais exigente do que León Gieco, reconheço) é que me permita morrer com dignidade.

Que Deus não cobre de mim por todos os privilégios que tive na vida – e foram muitos, e imensos – me dando uma morte indigna.

Os privilégios todos me foram dados sem que eu pedisse. Suely, Regina, Mary. Fernanda, Marina. Todos os amigos, todas as amigas, todas as namoradas que amei profunda, profundamente, como diz, repetidamente, a letra de Aragon musicada por Ferrat.

Não me sinto culpado por ter tido tanto privilégio na vida – mas também não gostaria que, em troca de tudo isso, para que eu expiasse minha felicidade, tivesse que ter uma morte indigna.

Grave, sério, Leonard Cohen canta que pediu ao Senhor uma nova chance: uma cara menos feia, um espírito mais calmo. Entupida de substâncias que afastam a lucidez, Janis Joplin (que, aliás, parece que deu uma vez para Leonard Cohen no Chelsea Hotel) pediu que o Senhor comprasse para ela um Mercedes-Benz.

Eu pediria ao Senhor algo menos drástico do que Leonard Cohen, algo menos babaca do que Janis Joplin.

Eu diria algo assim: olhe aqui, Senhor, nem sei como agradecer por tudo o que tive – e reconheço perfeitamente que a vida foi extremamente generosa para comigo. Mas, por favor, me dê uma morte digna.

Juquehy, novembro de 2013.

Um P.S.: Mary leu o texto e gostou. Até disso que gostou muito. Mas observou que pode parecer que estou doente. Não estou. Pelo menos que eu saiba… 

E, para quem não conhece, e para quem não conhece, aí está um belíssimo clipe de Mercedes Sosa e León Gieco, no Luna Park de Buenos Aires, em 1984, cantando “Sólo le pido a Dios”. 

8 Comentários para “Sólo le pido a Dios”

  1. O texto mostra a nossa idade, a proximidade do fim. Compactuo com Sèrgio, tivemos uma vida feliz e digna, a felicidade foi privilégio a dignidade uma escolha.

    Que seria uma morte digna? Sem dor? Sem sofrimento físico? Sem crises de consciência?
    Fuzemos o que deviamos, anonimamente.

    Minha professora Adelaide, fã de Alexandre Herculano e Chico Buarque me ensinou a poesia de Álvares de Azevedo:

    TRISTEZA
    Eu deixo a vida como deixa o tédio
    Do deserto o poente caminheiro;
    Como as horas de um longo pesadelo
    Que se desfaz ao dobre de um sineiro;

    Como um desterro de minha alma errante,
    Onde o fogo insensato a consumia…
    Só levo uma saudade — é desses tempos
    Que amorosa ilusão embelecia.

    Só levo uma saudade — é dessas sombras
    Que eu sentia velar nas noites minhas…
    De ti, ó minha mãe, pobre coitada,
    Que por minha tristeza te definhas!

    Descansem o meu leito solitário
    Na floresta dos homens esquecida,
    À sombra de uma cruz — e escrevam nela:
    Foi poeta, sonhou e amou na vida…

    Vamos deixar a vida, devagar. como o sol no deserto, poente caminheiro.

  2. “Por favor, me dê uma morte digna.” Faço minhas as suas palavras; claro que não sei quando vou morrer (ninguém sabe, felizmente) mas há medida que o tempo passa ela aproxima-se e eu, que já tenho uns anitos, penso nisso.

  3. 1. Eu acho que existem duas felicidades. A minha e a minha no mundo. De vez em quando elas brigam.
    2. Quanto à morte digna, puxa… o que dizer? Por mais que demore, por mais que doa, por mais que seja terrível… vem a horinha dela e pum. Ponto final. Vejo no meu cantinho muitos bichinhos morreram após longa agonia. Seremos um bichinho a mais. Muito estóico?

  4. Sérgio, no trecho que fala em “todos os amigos”, me sinto incluído e agradeço o privilégio.

  5. Claro que você está incluído, Valdir, e o privilégio é todo meu!

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