Quando saiu das mãos de Orson Welles, Charles Foster Kane, megalómano, críptico, já era muito maior do que a vida. Lembro os menos cinéfilos que falo do herói de um filme, Citizen Kane. O próprio Welles interpreta a personagem que morre no começo do filme sussurrando, numa misteriosa saída de cena, a palavra rosebud.
Como o filme mostra em sobressaltados flash-backs, Kane fora um poderoso magnata da Imprensa com sonhos políticos, amores desmedidos, uma devoradora vontade de se fazer amar – a si e ao que por ser seu, fosse um jornal ou uma mulher, era ainda ele mesmo.
Kane é um idealista. Como Belmiro, tem um jornal em que perde dinheiro. Como Balsemão, é um jornalista que se deixa fascinar pela política. Acumula poder e riqueza, mas corre a esconder-se em Xanadu, espécie de castelo obscuro e mágico. Todo o rico é carente, diria o padre João Seabra. A Kane falta-lhe a infância, o proustiano trenó chamado Rosebud com que brincou, livre e feliz.
Quando Citizen Kane se estreou, houve choro e ranger de dentes de alguns americanos poderosos, meio-esmagados pelo retrato com que, supunham, Kane os humilhava. Por ser o maior patrão da Imprensa e por, como Kane, ter usado o seu poder para tentar fazer de uma fraca actriz, Marion Davies, uma estrela, William Randolph Hearst foi quem reagiu com mais som e fúria.
Como isto não é para quem quer, mas para quem pode, Hearst tentou comprar o filme ao produtor para o destruir. Quase conseguiu, não tivesse Welles, à revelia, feito projecções a que também assistiram o professor Marcelo, talvez Pacheco Pereira, garantindo que a prenda não ficaria no fundo do saco.
Mesmo assim, Citizen Kane não teve a esmagadora estreia típica dos anos dourados do cinema americano. Meia-dúzia de cópias, nenhuma publicidade, nem críticas nos grandes jornais, a maioria por ser de Hearst, nos outros por solidariedade corporativa.
Hollywood é praticamente como Portugal. Todos se conhecem (não são é primos). O argumentista de Welles, Herman Manckiewicz, era visita de Hearst e conhecia os danados pormenores. Por exemplo, rosebud, a palavra mágica com que, na hora da sua morte, Kane evocava esse recôndito pedacinho de infância em que fora deliciosamente feliz, era o petit nom com que, em momentos deliciosamente felizes, Hearst sussurrava a um recôndito pedacinho de Marion Davies.
Traído na própria cama, percebe-se que Hearst tenha ficado sentido com Mankiewicz. Mas não prestou justiça a Welles: com excepção do impertinente pormenor, o retrato de Kane converte-o numa personagem para a eternidade.
E daí, Hearst foi menos ingrato do que parece. Foi o seu furioso ataque que deu ao filme as definitivas asas da lenda. Pensando melhor, Hearst é o secreto e íntimo co-autor de Citizen Kane.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
O verdadeiro sábio é aquele que assim se dispõe que os acontecimentos exteriores o alterem minimamente. Para isso precisa couraçar-se cercando-se de realidades mais próximas de si do que os fatos, e através das quais os fatos, alterados para de acordo com elas, lhe chegam.
Gostei desta sua filosofia de Xanadu, caro Miltinho. Aproveito para esclarecer os leitores que tenham menor contacto com a realidade lusa que Belmiro e Balsemão, referidos no textos, são dois poderosos patrões da media…