Está escuro. Mesmo no escuro, sei bem que estou corado. É desse intenso, rubro prazer, que só se tem no escuro de uma sala de cinema, que quero falar. Confesso-me. São prazeres gratuitos, indesculpáveis. Que se lixem as atenuantes. É para ser culpado? Sou.
Há o coradíssimo prazer de ver Michelle Pfeiffer sobre o piano do Fabulous Baker Boys. No cinema, sei que posso fazer dela o que quiser. Puxar-lhe o vestido vermelho um bocadinho para cima, o que seja veludo um bocadinho para baixo. Deixá-la cantar o “My Funny Valentine”, braços e pernas de febre, os brincos a brilhar – como semáforos que nos acendem o vermelho e já não podemos travar. Um tipo fica ali, no cavernoso fundo da sala de cinema, sem saber o que dizer a essa mulher carmim ou magenta, ou que é talvez escarlate: despe esse vestido, nunca dispas esse vestido.
Por falar em nuncas, nunca me arrependi tanto de não saber matemática como no dia em que vi Good Will Hunting. Lembram-se do riso gutural, primitivo, de Minnie Driver? É um riso, uma boca, que pede números irracionais. Ela estava deitada ao lado de um Matt Damon enfronhado em logaritmos, a ruminar equações, e eu a torcer-me na cadeira com vontade de ir com ela para a Califórnia, consolá-la da monumental e matemática tampa que Damon lhe dá. Corria o ano de 1997 e, no fundo da sala, teria ficado, de bom grado, com o que Damon não quis, colando-me ao sentido de humor e à tão fácil oralidade dela, àquelas pernas de estudantezinha universitária com que, mesmo sem a conhecer, já tinha passado a adolescência a sonhar.
E já não estou a pensar no vestido vermelho de Pfeiffer. Olho agora para o vestido verde de Keira Knightley. Em Atonement, ao virar as costas a James McAvoy, é a nós, ou seja, é a mim, que ela vira as costas. Em casa, na biblioteca iluminada a castanhos, a laranjas e sombras de Rembrandt, quase uma vela de La Tour, ela oferece-lhe as costas nuas, caminhando da secretária para a mais alta das estantes. Depois vira-se, a vibração verde do vestido incapaz de esconder ou disfarçar o escândalo de volume e cor que são os líquidos lábios dela. Diz que ama, e chora devagarinho. Não há cadeira, nem escuro, que prenda então um espectador que se preze. É tanto o amor dela que já são os livros da estante, o Women in Love do D. H. Lawrence, o Tess de Thomas Hardy”, a empurrá-la contra nós – contra mim – e há esses inefáveis quinze segundos de olhar e silêncio depois do primeiro beijo, os mais frutados, a morangos, a cerejas esmagadas, quinze segundos vintage, intensos, taninos.
Todo o espectador de cinema é anónimo, alcoólico, um secreto Ali Babá que colecciona diamantes de vício, colares de luxúria e pouca-vergonha. O verdadeiro espectador de cinema é um menino de catequese que peca no escuro.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Fabulous Baker Boys no Brasil se chamou Susie e os Baker Boys.
Good Will Hunting, Gênio Indomável.
Atonement, Desejo e Reparação.