Toda a pedagogia é amoral. Penso nos heróis hedonistas de um certo filme, eu que já estou mais para Maurice Chevalier (Honoré) do que para Louis Jourdan (Gaston). Recomendo o filme a Nuno Crato, talvez o único consensual galã do governo, que não desmereceria no papel de Gaston ao lado da juvenil Leslie Caron (Gigi).
Nuno Crato não canta? Não faz mal, dobra-se, que é o que bem se deveria fazer a muitos outros membros do Governo quando cantam.
O filme é Gigi, um desses esplêndidos musicais de Minnelli em que, num tempo de moralíssimo Código Hays, a dança e o canto branqueavam todas as transgressões.
Gigi é uma menina de 15 anos na Paris da Belle Époque. Descrentes dos méritos da escola pública, a avó e a tia ensinam em casa, a Gigi, a arte de ser cortesã. Dirão, os mais cínicos e sintéticos, que a ensinam a ser puta. Moralistas destes enganam-se sempre, responde-lhes a minha indignação. E por isso se pede a Nuno Crato que des-moralize a educação: só a amoralidade alimenta o processo cognitivo.
Há, então, uma menina de 15 anos que aprende a ser cortesã. Ensinam-lhe boas maneiras, a comer lagosta fria com solene delicadeza, a distinguir subtis variações de brilho em esmeraldas, a escolher um charuto pelo farfalhar dos dedos que o rolam. Em tudo a ensinam a não ser vulgar: as vulgares têm cabeças fracas e corpos descuidados, só lhes resta casar. Não é que o casamento esteja interdito, como explica a magistral tia a Gigi: “Em vez de nos casarmos logo no começo, pode às vezes suceder que nos casemos só no fim.”
Está Gigi a ser o corpo discente desta rendilhada pedagogia e já Gaston e Honoré passeiam epicurismo e patriótica honra masculina por alcovas e cabarets, por supinos jantares no Maxim’s. Todavia, fruto porventura de apressada licenciatura Bolonha avant-la-lettre, Gaston aborrece-se. O velho Honoré canta louvores às little girls e Gaston boceja. Riquíssimo, só na pobre casa da avó Mamita, onde vive Gigi, se sente bem. A jogar às cartas, a sentar Gigi, menininha, ao colo. Até perceber que Gigi é uma mulher e ele a quer.
Gaston oferece a Gigi o que dele se espera. Deslumbrante casa posta, carruagens, criados e jóias. Mas Gigi, que tudo sabe sobre o sórdido, já quer o sublime. “Ser gentil contigo, diz-lhe ela, significa que devo dormir na tua cama e, quando te canses de mim, passar à cama de outro cavalheiro!?”
Vemos que o processo cognitivo de Gigi se completou com um brilho a que ministro e sindicatos da docência não podem ser indiferentes. A cognição de Gigi é de raiz parmenidiana. Como Parménides, Gigi sabe que não se conhecem as coisas, só se conhece o Ser. O que é, é. E o Amor é o que é.
Pode ser um escândalo mas é no caldo amoral de um mundo de consentido adultério e romantismo cínico que o amor canta, dança e vence. Thank heavens.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.