Os meus melhores heróis são crepusculares. Vêm das sombras do cinema e nessas sombras se consomem, caminhando para o ocaso. Dá-lhes corpo, aos dois melhores, o mesmo, tão diferente, John Wayne.
Primeiro, Ethan Edwards, em The Searchers (oh, A Desaparecida de Ford!). É um Ulisses carregado de ódio, ressentimento e vingança, que sabe muito bem não ter Penélope a tecer-lhe esperas. Ethan, fantasma da guerra civil que todos civilmente querem esquecer, parte em busca de uma menina, a sobrinha raptada pelos índios, para deles a libertar e por causa deles a matar, única forma de a restituir à inocência que os selvagens lhe terão feito perder.
Ethan é herói sem lar que o espere, sem préstimo para um mundo em evolução. É um Ulisses sem Ítaca coisíssima nenhuma, mas que, afinal e contra si mesmo, acaba por resgatar e redimir. Redime-se num dos mais belos planos da história do cinema, momento epifânico em que ergue a sobrinha, Nathalie Wood, contra o azul e nuvens dos céus e a perdoa, ou no pânico do olhar dela se sente perdoado, em vez de ser o anjo negro da vingança que lhe cortaria a garganta juvenil. E quem, digam-me, a ver essa cena, não sentiu a garganta de espectador a apertar-se e em combustão, o peito com uma danada e convulsa vontade de deixar correr as lágrimas, a aceitável vergonha de, no escuro, ser homem e chorar? Quem não sentiu, quem não chorou, não é amigo, amigo de ninguém.
Segundo, ou outra vez primeiro, Wayne foi Tom Doniphon, em The Man Who Shot Liberty Valance. Herói outra vez de um mundo que já acabou, mundo de heroísmo físico, de coragem, punhos fortes, mão rápida a sacar o Colt, exímia pontaria com a Winchester, Tom Doniphon é íntegro e confia que nesses valores pode fundar a felicidade de quem ama. Mas o mundo vai mudar e sobretudo ele sabe que tem de mudar. É preciso que o combate ao Mal não dependa do armário do seu corpo, dos valentes murros ou dos tiros que nunca falha. O mundo que aí vem é o mundo da Lei, evangelho que a personagem de Jimmy Stewart anuncia, mas que não conseguirá implantar enquanto o Mal, o pistoleiro Liberty Valance, arbitrário terror da cidade, prevalecer.
Ora, para que a Lei seja Lei, é preciso que seja a Lei a vencer o Mal. Tom, o mesmo Wayne que já fora Ethan, animal exangue de um mundo ultrapassado, fará na sombra o que tem de parecer que a Lei fez à luz do dia. E para que a esplêndida Lei se inaugure, Tom, escondido, à traição, contra todos os seus códigos de honra, mata o Liberty Valance que, fosse este o mundo dele, teria liquidado no mais honesto dos duelos.
Herói de Ford, herói de gerações inteiras, Tom Doniphon, solução angustiada de um dilema, condenado à solidão que sobrevirá, é o herói desse mundo crepuscular que não quero que deixe de ser o mundo dos meus sonhos.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
The Searchers, em Portugal A Desaparecida, no Brasil se chama Rastros de Ódio.
The Man Who Shot Liberty Valence no Brasil se chama O Homem que Matou o Facínora.
Manuel me fez lembrar “True Grit” – Bravura Indômita-1969- o mesmo herói crepuscular.
A noção de vigança num espaço onde a civilização sem lei, do bem contra o mal, toma forma no herói “Rooster” Cogburn (filme original de Henry Hathaway). Único “Oscar” de John Wayne, caminha para o ocaso, preterido miseravelmente em virtude da refilmagem de 2010 da mesma obra pelos excelentes Irmãos Coen.
Miltinho, o homem era assim, caía o crepúsculo e ele era logo herói.