Obrigado, Bruce

Bruce Springsteen acredita em música. Na força da música. Na crença de que a música é poderosa, e pode fazer diferença.

Que maravilha haver gente que crê, que crê em crenças.

A crença de Bruce é forte, poderosa.

“We learned more from a 3-minute record, baby / Than we ever learned in school”, ele proclamou, em “No Surrender”, no seu disco de 1984, o absolutamente emblemático Born in the USA, de 1984.

Escolhidos assim, aleatoriamente, esses versos podem parecer um desnecessário, idiota convite à preguiça, ao não-estudo – algo assim como aquele ex-presidente passou incontáveis anos a desensinar os jovens brasileiros.

Não é nada disso. Os versos de Bruce jamais convidam à preguiça, à aquietação, à idiotice. Muito antes ao contrário.

Os versos de “No Surrender” são um elogio à força da música, que consegue, segundo o autor, ser ainda mais importante, mais forte do que o aprendizado lerdo, cansado, cansativo, que se dá nas salas de aula.

Não compreender direito o que Bruce diz em suas letras virulentas, nuas, cruas, tornou-se um esporte universal. Muita gente, mundo afora, conseguiu considerar a letra de “Born in the USA.” como uma coisa patrioteira, reacionária, supremacista. É exatamente o contrário: “Born in the USA.” é um hino à força das pessoas comuns, gente como a gente, contra os governos, contra as guerras em que os governos – sejam eles republicanos, sejam eles até mesmo democratas – enfiam as pessoas.

Believer, ativista, apaixonado pelas pessoas sempre, Bruce ataca governos, sistemas, na defesa virulenta dos seres humanos, sempre maiores, mais importantes do que aqueles, aquelas.

(As fotos deste post são de Zanone Fraissat, da FolhaPress. Imagino que, como são fotos claramente feitas com amor, o fotógrafo permitiria o uso delas aqui.)

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Há gênios na música. Dylan, é claro. Paul Simon, Leonard Cohen, Chico, Caetano. Há os geniais fazedores de canções – Paul McCartney, Cat Stevens, Milton Nascimento.

Creio que todos os grandes fazem música para expressar o que sentem. Ou se expressariam, ou explodiriam. Fazer música, para eles, é a forma de se comunicar com o mundo.

Acho que Bruce é diferente. Bruce faz música porque acredita na beleza, no poder da música.

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zzbruce2Já vi muito show de música na vida, graças ao bom Deus – mas nunca vi nada parecido com o show de Bruce Springsteen e a sua E-Street Band no Espaço das Américas, na Barra Funda, em São Paulo, momentos atrás, para cerca de 7 mil pessoas de muita sorte .

A gente acha que os shows de Paul McCartney são a mais absoluta expressão de alegria de um artista diante de sua platéia. E isso é verdade. Mas a comparação é inevitável: a alegria de Paul parece menor que a de Bruce.

Paul faz questão de falar com seu público na língua dele, seja onde for. Estudou umas frases em russo para seu show histórico na Praça Vermelha. Aprendeu umas frases em português. Em Porto Alegre falou umas expressões especificamente porto-alegrenses.

Sou um sujeito de sorte, e vi os até hoje dois únicos shows de Bruce Springsteen no Brasil: o desta quarta-feira, 18 de setembro, o triste dia em que o Supremo Tribunal Federal resolveu recomeçar o julgamento dos quadrilheiros do mensalão, e o de 1988, da Anistia Internacional, no campo do Palmeiras, em que ele era apenas um dos muitos artistas – o grupo excelso tinha Milton Nascimento, Sting, Youssou N’Dour, Tracy Chapman, Peter Gabriel. No show de 1988, todos os artistas cantaram juntos uma música de abertura, em seguida havia apresentações de cada um. Bruce foi o último a fazer o show solo, antes que todos voltassem a se reunir no palco para o encerramento. (As canções de abertura e encerramento foram de dois Bobs, o Marley e o Dylan.)

No palco montado no campo do Palmeiras, Bruce berrou: “Están listos?”

Brinquei com Mary, enquanto esperávamos a abertura do primeiro show solo de Bruce no Brasil, um dos dois únicos que fará desta vez (ele canta sábado no Rock in Rio, é claro), que ele iria berrar: “Están listos?” Porque, afinal de contas, tudo o que está abaixo do Rio Grande fala “mexicano”.

Poucas vezes na vida estive tão enganado.

zzbruce3Bruce saudou São Paulo em português, e – meu Deus do céu e também da terra, que coisa incrível, fantástica, impressionante, absolutamente imprevista – atacou de “Sociedade Alternativa”, de Raul Seixas. (No site oficial dele há o clip da apresentação do hino de Raul.)

Não apenas o refrão famoso, fabuloso, mas a música inteirinha.

Diacho: quem será que deu a dica para Bruce? Quem disse para ele que “Sociedade Alternativa” faria a absoluta felicidade de toda a platéia?

Mary, sempre arguta, precisa, comentou que aquela música era perfeita – que toda a platéia reconheceria, aplaudiria. “Sociedade Alternativa” está acima do bem e do mal, de qualquer tipo de dissensão. Ela comentaria também – arguta, precisa – que Bruce gosta de ser tocado pelo público. Gosta do contato físico com seu público – não se importando com o fato de que esse contato direto poderia, talvez, ser perigoso.

Bruce se jogou sobre o público. (Ele costuma fazer isso nos seus shows, embora não em todos.) Foi carregado pelo público na horizontal, enquanto cantava a quinta (ou seria a sexta?) das músicas do show. O público o carregou na horizontal nos braços para dentro da pista, e o devolveu direitinho ao palco.

Bruce desceu do palco e confraternizou com as pessoas diversas vezes. Beijou duas senhorinhas mais velhas que ele, na fila do gargarejo, e foi beijado por elas.

Puxou não uma mocinha para o palco, enquanto cantava “Dancing in the dark”, como fez no que acabou virando o clip oficial da música em 1984, mas cinco mocinhas e mais um garotão. Cantava “Dancing in the dark” no meio deles, era abraçado e beijado por eles – e depois os botou a todos para fora, com a maior gentileza.

Antes, já havia puxado para o palco um casal. A moça tinha escrito um cartaz com as palavras “Marry me”; o acompanhante dela pareceu reclamar, e Bruce o puxou também para o palco.

Por diversas vezes, Bruce deixou que o público cantasse as letras de suas músicas, ele em silêncio – e o público cantou a plenos pulmões, como se estivéssemos em país de língua inglesa, diversos versos de “The River”, “Because the night”, “No Surrender”, “Darlington County”, “Hungry Heart”.

Recolheu por várias vezes os cartazes em que as pessoas pediam que ele cantasse tal e tal música.

Recebeu de uma garotinha um grande buquê de flores, e, enquanto cantava “Waitin’ On a Sunny Day”, tirou uma das flores e entregou para a garotinha; fez a menina cantar uma frase do refrão da canção, e depois a ergueu acima de seus ombros com os braços fortes, de quem faz musculação há tempos.

Falou diversas frases em português, que lia em cartazes que deve ter botado no chão do palco.

Pegou um copão de cerveja de alguém da platéia e sorveu o conteúdo de uma única vez – sob aplausos frenéticos.

Depois de 2 horas e 30 minutos de show quente, de rock poderoso, agitado, febril, voltou para nada menos que 50 minutos de bis. No total, foram 3 horas e 20 minutos de show. Brinquei no Facebook, assim que voltamos para casa, que nós, paulistas, poupamos Bruce para que ele estivesse inteiro no Rock in Rio – afinal, ele chegou uma vez a fazer um show de 4 horas e alguns minutos, na Finlândia.

O último dos últimos dos últimos bis ele fez sozinho, só com o violão acústico e a harmônica. Os 17 músicos estavam exaustos, não aguentavam mais – e além disso tinham que se resguardar para o show do Rock in Rio daí a três dias. Sobrou então para ele encerrar sozinho; tem muito gás, é jovem – apenas 63 anos. Só vai completar 64 no próximo dia 23 deste mês de setembro, depois do Rock in Rio.

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O som de Bruce é uma maravilha, uma perfeição.

zzbruce5A E Street Band o acompanha desde 1974. Participam da Wrecking Ball, a atual turnê mundial, iniciada no ano passado, quatro dos membros originais do grupo: o guitarrista Steve Vaz Zandt, o pianista Roy Bittan, o baixista Garry Tallent e o baterista Max Weinberg.

Gente que toca junto há quase 40 anos sabe o que faz, certo?

Dois dos membros originais da E Street Band já morreram: o organista Danny Federicik e o saxofonista Clarence Clemons. Os dois foram homenageados ao final do show, com a projeção, nos telões, de fotos suas.

Clarence Clemons era, além de um extraordinário instrumentista, um showman, uma presença fortíssima no palco. Substituí-lo seria uma tarefa impossível. O escolhido para o saxofone da banda foi Jake Clemons, sobrinho do homem. O rapaz é brilhante.

Em 1984, a banda ganhou a primeira mulher, Patti Scialfa, nos vocais e diversos instrumentos de percussão. Patti primeiro foi membro da banda – só depois é que se tornou a patroa do Boss. É uma bela presença no palco.

Uma outra presença magnética é Cindy Mizelli, uma backing vocal linda, de vasto cabelo afro, cuja figura faz lembrar um pouco a Roberta Flack bem jovem. Cindy Mizelli poderia perfeitamente ter carreira solo: sua voz é poderosíssima, riquíssima.

Aliás, o vozeirão de The Boss continua também possante. Mary achou que o vozeirão dele está ainda mais potente do que no passado.

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Foi só no dia seguinte ao show que fiquei sabendo que Bruce se preparou muito bem para esta fase sul-americana da sua turnê mundial. Fez pesquisas, botou seu pessoal para fazer pesquisas sobre Chile, Argentina e Brasil.

Em Santiago, no dia 9 de setembro, leu em espanhol – um espanhol com forte sotaque, é claro, mas absolutamente compreensível, como se pode ver no vídeo disponível em seu site oficial – um texto dizendo que em 1988 se apresentou no show da Anistia Internacional na vizinha argentina, mas tinha o Chile em seu coração. Não explicitou, porque não era necessário, que em 1988 ele ainda não poderia se apresentar no país, vivendo então os estertores da ditadura do general Pinochet. Terminou a introdução dizendo “Victor Jara vive”, pediu desculpas pelo espanhol, e cantou “Manifiesto”, de Jara – aquela canção maravilhosa que diz “Yo no canto por cantar / ni por tener buena voz, /  Canto porque la guitarra / tiene sentido y razón”.

zzbruce6Em Buenos Aires, no dia 16, cantou “Sólo le pido a Dios”, de León Gieco, tocando violão acústico e harmônica, como nas gravações do autor. Depois de um trecho em espanhol, acrescentou alguns versos em inglês, bem vertidos, fiéis à letra original (“Sólo le pido a Dios / Que la guerra no me sea indiferente, / Es un monstruo grande y pisa flerte / Toda la pobre inocencia de la gente”.

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Em São Paulo, antes da última canção, fez uma pequena declaração de amor à platéia, a nós que estávamos ali mesmerizados. Disse que não poderia imaginar uma acolhida tão entusiasmada. Pediu desculpas por não ter cantado aqui antes, prometeu que vai voltar em breve. E repetiu a promessa: quer voltar em breve.

Ah, hipocrisia de artista, mentira. Ele diz isso ao final de cada show – poderiam argumentar os céticos.

Pode até dizer isso ao final de cada show, mas não acho que seja mentira. Bruce Springsteen não tem por que mentir. Bruce Springsteen acredita nas coisas que diz. Ele é uma pessoa que crê. E, como eu – tenho absoluta certeza -, não gosta dos céticos.

19 e 20 de setembro de 2013

Eis a lista das músicas apresentadas em São Paulo: 

1.Sociedade Alternativa

2.We Take Care of Our Own

3.Badlands

4.Death to My Hometown

5.Spirit in the Night

6.Darkness on the Edge of Town

7.Prove It All Night

8.No Surrender

9.Bobby Jean

10.Hungry Heart

11.The River

12.American Skin (41 Shots)

13.Because the Night

14.She’s the One

15.Darlington County

16.Working on the Highway

17.Shackled and Drawn

18.Waitin’ on a Sunny Day

19.The Rising

20.Thunder Road

21.Land of Hope and Dreams

 

No bis:

1.We Are Alive

2.Born in the U.S.A.

3.Born to Run

4.Dancing in the Dark

5.Tenth Avenue Freeze-Out

6.Shout

7.This Little Light of Mine

8.This Hard Land

6 Comentários para “Obrigado, Bruce”

  1. Nunca tive a sorte de ver o Bruce, ainda esteve em Portugal o ano passado, mas foi em Lisboa e um só concerto. Antes penso que esteve cá em 1993.
    Para mim é difícil ir a Lisboa para um concerto, já fui, mas fica caro, viagem, dormida, refeições e bilhete, tudo somado é um bocado puxado.
    É um dos artistas que mais de ver ao vivo, paciência.

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