O exemplo de “O Globo”

Há quase 50 anos, acontecia o fatídico 31 de março de 1964. Meio século depois, é muito bem-vindo o editorial em que o jornal O Globo reconhece, sem meias palavras, que “apoiar a ditadura foi um erro”.

Seria ótimo se outros meios de comunicação, setores do empresariado, do mundo político, da Igreja, das universidades e da classe média que apoiaram o golpe militar de 1964 se mirassem nesse exemplo.

Não se propõe um autoflagelamento irrestrito. Mas reconhecer o quanto uma atitude corajosa contribui para o país virar uma das páginas mais tenebrosas de sua história.

É necessário fixar os olhos no futuro. Mas isso só acontecerá se todos refletirem sobre o passado e chegarem, ao final, à mesma conclusão de O Globo: “A democracia é um valor absoluto. E quando em risco, ela só pode ser salva por si mesma”.

Tendo em mente esse valor, cada segmento da sociedade deveria refletir sobre o seu papel nos anos de chumbo. É irrelevante e estéril a discussão sobre por que só agora O Globo fez o “mea culpa” ou o quanto se beneficiou do regime militar.

Até porque, para ser isonômico, teríamos que usar da mesma severidade ao analisar o comportamento de quase todos os meios de comunicação, de quase todos os grupos econômicos e financeiros e, por que não, de políticos que hoje estão no “campo progressista” e fazem parte da base dos governos lulopetistas.

O foco no retrovisor pode desaguar num ajuste de contas já rejeitado pelo povo brasileiro ao apoiar a anistia e ao transitar para a democracia pela via pacífica e pactuada.

Temos o direito de conhecer a verdade, sobretudo o que aconteceu com os mortos e desaparecidos. Mas o acerto com o passado não pode se dar dentro da ótica do revanchismo ou com uma reinterpretação da história que transforme em vilões todos os que apoiaram o regime militar.

Não estamos diante de um filme de bandidos e mocinhos. Todos não têm o mesmo peso na balança, claro. É fundamental reconhecer os erros cometidos no passado. Isso vale também para os que enfrentaram a ditadura com armas nas mãos. Estes, além de optar por um caminho equivocado, praticaram ações incompatíveis com a democracia.

Um exemplo foram os episódios que resultaram no assassinato do sinistro empresário Henning Boilesen, personagem do diretor Chaim Litewski no ótimo documentário Cidadão Boilesen.

Tem razão a jornalista Suzana Singer, ombudsman da Folha, ao dizer: “É a primeira vez que se vê tamanho ato de contrição na imprensa brasileira. Trata-se do principal conglomerado de mídia assumindo um erro editorial –não de informação– sobre um momento decisivo da história recente do país”.

E faz sentido sua cobrança indireta: “A Folha, o jornal mais aberto a críticas e o único, entre os grandes, que mantém um ombudsman, nunca fez algo parecido”. Nem os outros meios de comunicação o fizeram.

Torcemos para que o pioneirismo de O Globo sirva de exemplo para que se consolide em nosso país uma imprensa pluralista, investigativa, comprometida com a verdade.

Uma imprensa que nunca esteja submetida à tutela estatal, partidária ou de outra natureza para cumprir seu verdadeiro papel em um país de ordenamento democrático.

Este artigo foi originalmente publicado na Folha de S. Paulo, em outubro de 2013.  

Hubert Alquéres é vice-presidente da Câmara Brasileira do Livro e membro do Conselho Estadual de Educação de SP. Foi presidente da Imprensa Oficial do Estado de SP (2003-2011).  

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