O Conde Boa Morte

Andava pela cidade vestido de negro. Dizia que sua cama era um caixão. Era poeta e, além de circular pela metrópole, ia às escolas. Lembro-me dele visitando o Colégio Estadual, desfilando seus trajes, seu palavreado erudito, suas criações poéticas. Leio nos jornais que seu nome era Joviano Martins Soares Filho e que foi achado morto, aos 83 anos, deitado no sarcófago que lhe servia de leito.

Fico sabendo que publicou seu primeiro livro, Rosas do meu altar, em 1955, encorajado pelo então governador Juscelino Kubitscheck.Em 1963, época em que o via pelas ruas de Belo Horizonte, lançou A dança dos espectros, que resultou em comparações de sua obra com a de Augusto dos Anjos.

É do mesmo ano, mas só conheci algum tempo depois, o filme de José Mojica Marins, o Zé do Caixão, À meia noite levarei a sua alma, que fui assistir por curiosidade, e até gostei, depois que um crítico do jornal Correio das Manhã, Salvyano Cavalcânti de Paiva, escreveu que aquele filme era a maior obra-prima do cinema. No mesmo jornal, um outro crítico louvou o primeiro filme dos Beatles, Os reis do ié-ié-ié, de Richard Lester. O filme e o diretor me levaram a me encantar com a música dos quatro garotos de Liverpool. A crítica de Sérgio Augusto foi mais exata , menos exagerada e me serviu mais.

A morte do Conde me traz recordações de um tempo em que estudei num colégio público de alto nível, que formou uma geração de mineiros que se destacariam ao longo de suas vidas. A tradição do Estadual vinha de longe, de quando era o chamado Ginásio Mineiro. Enquanto o Boa Morte mexia com a imaginação dos cidadãos, o professor Altimiras nos fazia, em suas aulas de latim,  dominar melhor a língua portuguesa. O jovem poeta Affonso Romano de Sant’Anna ensinava e se surpreendia com o conhecimento de alguns de seus pupilos. Era uma troca em que todos ganhavam, os que tinham seu rumo traçado e as jovens promessas que despontavam. O mesmo acontecia nos cursos de exatas e biológicas. Muita gente boa andou pela rampa e pelas salas do Colégio Estadual.

A visão que tenho do poeta agora morto é de um tempo em que a ditadura militar incentivada por civis não se estabelecera no país. Na Avenida Afonso Pena, ainda toda coberta  com seus belos fícus, estudantes de engenharia, talvez sem coragem de abordar as moças que passavam, contratavam a Lambreta, mendiga querida por todos,  para que perturbasse a passagem das flores mineiras.

O Edifício Maletta,  com seus bares e restaurantes frequentados por professores, estudantes, jornalistas, escritores, artistas plásticos, músicos e cineastas, fervia todas as noites. Belo Horizonte era uma cidade que respirava juventude, cultura e liberdade.

Esta crônica foi originalmente publicada no Estado de Minas, em fevereiro de 2013. 

2 Comentários para “O Conde Boa Morte”

  1. As saudades de BH se assemelham as saudades do Rio. As duas cidades carecem de ar juvenil, cultura e liberdade. O conde Boa Morte me fez lembrar um homem das ruas do Rio. Seu nome era José Datrino, chamado de Profeta Gentileza (1917-1996). Por mais de vinte anos circulava pela cidade com sua bata branca cheia de apliques e com seu estandarte, pregava nas praças e colocava-se nas barcas entre Rio e Niterói anunciando sem cansar: “Gentileza gera Gentileza”. Só com Gentileza, dizia, superamos a violência que se deriva do “capeta-capital”. Inscreveu seus ensinamentos ligados à gentileza em 56 pilastras do viaduto do Caju, à entrada da cidade.

  2. Pelos idos de 1960 eu treinei atletismo junto com o Conde Bela Morte e fui vê-lo no teatro Francisco Nunes tocando trompa…

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