“Bastard.” Foi a primeira coisa que Louis B. Mayer disse a Billy Wilder, mal acabou a projecção privada de Sunset Boulevard. Repare-se na economia da língua que os americanos usam. Uma só palavra para o que, se lhe quisermos chamar a mesma coisa, a língua portuguesa chama com três, contando a preposição “da”… Voltemos aos gritos de Mayer: “You, bastard! Desgraçaste a indústria que te criou e deu de comer! Deviam cobrir-te com alcatrão quente e penas, correr-te a pontapé de Hollywood!”
Louis B. Mayer era o patrão dos patrões da indústria cinematográfica, dono da MGM, legiões de estrelas a seus pés. Deu-se ao luxo de ter escritores como Fitzgerald e Faulkner presos a uma dourada trela de dólares. Tinha, ele mesmo, uma visão ouro e prata de Hollywood. E o odor a morte de Sunset Boulevard atropelava a lenda de sonho, de aventuras heróicas e finais felizes que mandara construir em mil filmes.
Billy Wilder era um austríaco divertido, divertidíssimo até, se o divertimento tiver a inteligência de contemplar sarcasmo e crueldade. Contava, por exemplo, este episódio de Arthur Miller e Marilyn. O escritor, noivo de Marilyn, disse-lhe que queria apresentá-la à mãe, que morava no Bronx. E quem é que, no seu perfeito juízo, morando no Bronx ou em Alfama, não quereria apresentar Marilyn à mãe: “Mãezinha, caiu-me este pedaço de céu em cima, um paraíso de leite e mel” e outras pérolas parecidas.
Correu tudo maravilhosamente. Marilyn gostou da mãe, a mãe gostou dela. A metade humana de Marilyn precisou, entretanto, de ir à retrete. Viu que as paredes eram finas e, para evitar a traição de certos ruídos, abriu todas as torneiras. No dia seguinte, Miller liga à mãe para saber se gostara da noiva. “Uma miúda encantadora, divina, mas, ó filho, mija como um cavalo.”
“You, bastard”, gritou, sem razão, Louis B. Mayer. Sunset Boulevard começa, de facto, com um morto na piscina, o morto que nos contará toda a história. Mas Billy Wilder, velhaco que fosse (porque pequenino não era), nunca teve razões para cantar a morte. A mãe, o padrasto, a avó foram assassinados em Auschwitz. Sempre sublinhou que, enquanto muitos cineastas alemães estavam em Hollywood por terem sido convidados, ele tinha vindo para escapar ao forno. Um tipo destes não faz jogos diletantes com a morte.
“Senhor Mayer, vá à merda.” Sucinto, prosaico, sonoro. Foi o que Billy Wilder disse de volta ao patrão dos patrões. Com toda a razão. Sunset Boulevard canta Hollywood a partir do trágico das personagens. Norma Desmond, a personagem de Gloria Swanson, toma conta da actriz para a eternidade. Nunca como aqui, emergindo orgulhosamente do negrume, Hollywood pôde ou voltará a dizer, pela boca de Norma: “Alright, Mr. DeMille, I’m ready for my close-up.”
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Sunset Boulevard no Brasil é Crepúsculo dos Deuses.
Belo texto sobre um brilhante filme! E um diretor que foi imprescindível!
Uma maravilha de texto, é um prazer ler coisas tão bem escritas sobre um filme extraordinário.
Caros Rafael e José Luis, agradeço a generosa apreciação do texto. Um filme como Sunset Boulevard “ilumina” tudo.