Poucos compositores foram tão exaustivamente regravados quanto Bob Dylan, ou tiveram discos inteiros dedicados apenas a suas composições. Creio que nem os Gershwin, Cole Porter ou Irving Berlin, os maiores autores da Grande Música Americana, tiveram tantos discos só com suas obras.
Talvez apenas os Beatles se rivalizem com Dylan nesse quesito.
Não passa um ano em que não aparece um novo disco de fulano sings Dylan, ou beltrano sings Beatles. O mítico Richie Havens, morto outro dia mesmo, foi o único, que eu saiba, que matou os dois coelhos com uma cajadada só: em 1987, lançou uma beleza de disco: Richie Havens sings Beatles and Dylan, subtítulo Old & New, Together & Apart. Canções velhas e novas, dos quatro garotos de Liverpool juntos ou depois da separação.
A primeira cantora a fazer um disco inteiro só com canções de Dylan foi Odetta, a grande, a maravilhosa, a insuperável Odetta. Pouco conhecida no Brasil, Odetta é uma gigante da música popular feita nos Estados Unidos. A ótima The Folk Music Encyclopaedia, publicada pela primeira vez em 1976, que comprei em 1980 no há muito tempo desaparecido Book Centre, livraria maravilhosa na Gabus Mendes, aquela travessinha entre a 7 de Abril e a Basílio da Gama perto da Praça da República, a descrevia assim, no início do longo verbete:
“Proeminente contribuinte para a volta da música folk dos anos 1950 e início dos 1960, Odetta se transformou numa personalidade bem conhecida na cena do Greenwich Village de Nova York. Suas apresentações ricamente trabalhadas e sua sensibilidade como cantora folk a fizeram bastante popular e altamente imitada.”
E depois: “Odetta personifica uma variedade emocional e vocal que a torna universalmente atraente para todas as idades, cores e credos. Em sua carreira de mais de 20 anos (até 1977, época do lançamento do livro), ela produziu 13 álbuns, e suas apresentações contínuas atestam uma popularidade e aceitação inabaláveis que garantiram a ela a distinção de ser uma das poucas cantoras do boom do folk que permaneceram ativas e comercialmente produtivas ao longo dos anos.”
Quando Odetta – nascida Odetta Holmes, em 1930, no Alabama racista, oficialmente, legalmente racista – morreu, em 2008, aos 78 anos, percebi mais uma vez, pela forma com que o New York Times a homenageou, como sua importância é sobejamente reconhecida.
(A foto abaixo, Odetta ao lado de Sidney Poitier, é do fotógrafo Al Fenn, da revista Life, e foi feita num ato pelos direitos civis em Nova York, em 1960.)
Diferentemente do que a enciclopédia de folk insinua, Odetta trafegou por outros gêneros. Foi uma excelente blueseira – não do blues mais eletrificado, mas do blues de raiz, mais à la Robert Johnson.
Odetta Sings Dylan é de 1965.
***
Gosto de datas, adoro cronologia.
Com o passar do tempo (time is a jet plane, it moves too fast, diz uma canção de Dylan, mas time passes slowly where you’re lost in a dream, desdiz ele em outra canção), as coisas podem se embaralhar.
Os mais jovens (e como há mais jovens, meu Deus do céu e também da terra) podem perfeitamente não ter noção de que Joan Baez foi fundamental para que Dylan se tornasse conhecido. Dylan hoje é 200 mil vezes mais conhecido do que Joan Baez, ou Odetta, ou Peter, Paul and Mary, mas não era assim, quando todos eles começaram.
Odetta começou a gravar em 1954, e foi por volta de 1957 que atraiu a atenção dos monstros Pete Seeger e Harry Belafonte. Em 1960, lançou seu sétimo disco, gravado ao vivo no lendário Carnegie Hall de Nova York.
Joan Baez irrompeu na cena lá por 1959. Seu primeiro disco oficial saiu em 1960, e ela virou imediatamente a estrela, a Madona, a rainha da música folk.
O primeiro disco de Dylan saiu em 1962, quando Odetta já era muito reconhecida por uns poucos e bons e Joan Baez já era grande estrela, capa da revista Time numa época em que raros artistas mereciam essa honra. No mesmo ano saiu o primeiro disco de Peter, Paul and Mary. A diferença foi que o disco do trio vocal fez sucesso imediato, e o de Bob Dylan vendeu ridículas 5 mil cópias, se é que me lembro do número correto.
No segundo disco de Peter, Paul and Mary, de 1963, havia três canções do jovem Dylan. Duas delas chegaram aos primeiros lugares dos discos mais vendidos, como mostra o livro The Billboard Book of US Top 40 Hits: “Don’t think twice, it’s all right” chegou ao nono lugar, e “Blowin’ in the Wind”, ao segundo.
Não há, nos alfarrábios, a data exata em que a grande estrela Joan Baez comeu o garotinho iniciante Dylan, mas o fato é que já em 1962, no disco Joan Baez In Concert Part 2, o quarto disco dela, há duas canções dele, “Don’t think twice, it’s all right” e o hino “With God on our side”.
***
A própria Joan Baez, a primeira artista já consagrada a cantar Dylan, a levá-lo aos festivais de música folk de Newport (e a comê-lo, mas isso é menos importante aqui), só faria um disco exclusivamente de canções dele em 1968, Any Day Now, uma maravilha lançada originalmente como um LP duplo, com 16 canções, e capa e contracapa ilustradaas por desenhos da própria cantora.
Pois então Odetta, ao gravar, em 1965, o disco Odetta Sings Dylan, saiu à frente de todos.
1965 foi um ano tumultuado, tormentoso, fundamental na carreira de Dylan. Foi o ano em que ele lançou seu quinto disco, Bringin’ It All Back Home, metade ainda folk, metade já rock, e também seu sexto, Highway 61 Revisited, a virada total para o rock.
Começava a virar cult, atraía o ódio de seus primeiros fãs por ter trocado o folk pelo pop & rock, mas ainda não era inteiramente reconhecido como gênio, nem era tão popular assim.
Gosto de datas, adoro cronologia – e adoro botar os pingos nos is.
Odetta estava muito à frente do tempo ao gravar Odetta Sings Dylan.
***
Além da primazia, do fato de ela ter sido a primeira, a pioneira, há pelo menos três coisas absolutamente especiais no disco: a voz, os arranjos e a escolha do repertório.
A voz. Meu Deus do céu e também da terra, que voz tem a mulher. Tivesse sido treinada, poderia ter sido uma cantora lírica de primeira. (Ainda bem que não foi, e ficou cantora popular.)
A voz de Odetta tem poucos paralelos. Penso em apenas duas cantoras que poderiam rivalizar suas vozes com os graves de Odetta: Nina Simone e Virgínia Rodrigues.
Os arranjos. Meu Deus do céu e também da terra, como são extraordinariamente fantásticos os instrumentistas que acompanham Odetta nas canções de Dylan neste disco. Era o ano em que Dylan rompia com o folk e ia para o rock, mas Odetta fez um disco absolutamente acústico. Cada um tem direito a ter suas preferências, e eu mesmo até que tenho grande admiração por alguns guitarristas, mas não há nada como o acústico. Acompanham a voz gigantesca de Odetta um baixo acústico incrível, alguns violões acústicos absolutamente estonteantes.
Nunca tão poucos instrumentos acústicos fizeram tantos sons magistrais na obra de Dylan quanto os acompanhantes de Odetta aqui. É enlouquecedor.
Ouço o disco hoje, 2013, quase meio século depois da gravação, e sinto arrepios diante de tanta beleza.
E aí vem o bom gosto de Odetta no repertório.
Sei lá quantas canções Dylan havia composto até 1965. Até daria para contar, se eu fosse ali e pegasse um dos dois livros com as letras das músicas em ordem cronológica, mas não é o caso.
O fantástico é o seguinte: das 12 canções de Odetta Sings Dylan, há seis que o próprio compositor já havia gravado em seus discos oficiais, e seis que não estavam na sua discografia. Ela foi pescar canções pouco conhecidas, menos badaladas na obra dele. Prova de faro, de faro sensibilíssimo, coisa que só Nara Leão e pouquíssimos outros artistas têm.
Quando saiu o disco, em 1965, ainda não tinham sido lançadas gravações do próprio Dylan de “Baby, I’m in the mood for you”, “Long ago, far away”, “Tomorrow is a long time”, “Long time gone” e “Paths of Victory”.
As seis já gravadas eram algumas das maiores obras de Dylan até então: “Don’t think twice, it’s all right”, “Masters of War”, “The times they are a-changin’”, “Mr. Tambourine Man” e – fazer o quê? – “Blowin’ in the wind”, o hino de uma geração que o panaca do Suplicy conseguiu a proeza de transformar em merda.
Tudo é extraordinariamente lindo. A releitura de “Mr. Tambourine Man” é de fazer chorar um frade de pedra.
***
O poeta é um fingidor, e Dylan, que além de poeta é E.T., já mentiu muito na vida. Especialmente no início da carreira, adorava contar abobrinhas para os repórteres que o entrevistavam – e eles, ingênuos, publicavam as lorotas.
Em algum momento, Dylan deu uma entrevista dizendo que, quando adolescente, gostava de rock, mas, ao ouvir Odetta, vendeu sua guitarra elétrica e comprou um violão acústico e passou a se dedicar à folk music. Não sei se essa história é verdade, ou é uma das muitas mentirinhas que ele contava para os repórteres desavisados. Mas talvez seja verdade. A frase consta do encarte do disco, quando ele foi relançado em CD, nos anos 2000, se não me engano. Àquela altura, Dylan já era mais importante, mais famoso, mais badalado que Odetta, e então um elogio dele a ela era peça de marketing. As voltas que o mundo dá.
***
Este texto já ficou grande, mas ainda quero falar sobre minha história pessoal com Odetta Sings Dylan.
Descobri o disco na biblioteca do ICBEU, o Instituto Cultural Brasil-Estados Unidos de Curitiba, que funcionava então (era 1966) naquele belo prédio que existe até hoje na esquina da Rua das Flores, ou Rua XV, ou Boca Maldita, com a Rua Voluntários da Pátria, no local em que começa a bela Praça General Osório. (Fiz a foto aí ao lado numa ida mais ou menos recente a Curitiba.)
Foi o primeiro lugar em que trabalhei, o ICBEU de Curitiba. Uma funcionária da administração, da secretaria, tirou licença maternidade, e, não me lembro por que, de que maneira, fiquei sabendo que haveria a vaga, e me apresentei, e fui aceito. Cursava o segundo ano do Colégio Estadual do Paraná à noite, e então tinha o dia inteiro para trabalhar na secretaria do ICBEU. Com a vantagem de que os funcionários tinham bolsa total para os cursos de inglês, e então, além de trabalhar lá, ainda entrei no curso, o que me facilitou mais tarde obter aprovação para começar na Cultura Inglesa já no quinto ano, se a lembrança for correta.
A biblioteca do ICBEU não tinha apenas livros – tinha também LPs.
Peguei emprestado Odetta Sings Dylan e levei para nossa casa no Guabirotuba. Lá, tínhamos um sonzinho mequetreque, vagabundo.
Meses mais tarde, quando estava no meu segundo emprego da vida, como secretário do senhor Vojtech Rona, um amante do universo da música clássica e possuidor de um aparelho de som extraordinário, ousei levar para ele Odetta Sings Dylan. O senhor Rona jamais tinha ouvido falar em Bob Dylan ou Odetta, mas eu pedi que ele pusesse para tocar no seu fantástico som o LP, e ele, um gentleman como poucos, tocou.
Ouvir Odetta cantando Dylan no som maravilhoso do senhor Rona foi uma das mais extraordinárias experiências dos dois anos que passei em Curitiba.
Acho que foi melhor até do que bolinar – com a total aquiescência dela, é preciso registrar – a empregada da senhora Rona.
24 (e um pouquinho do 25) de maio de 2013, o dia dos 72 anos de Dylan.
Não me lembro desta cantora e vou procurar saber mais sobre ela.
Só uma nota: ela faleceu há algum tempo (2008) e como o Sérgio se refere a ela no (tempo)presente pensei que fosse viva, mas não é, o que é pena.
Segui o conselho do José Luis, procurei e achei. Boa, como sempre a dica do Sérgio.