Estava caminhando quando tocou no iPod “Tell Me That It Isn’t True”. Fazia bom tempo que não ouvia. Repeti uma, duas, três vezes. Em casa, botei pra Mary ouvir, uma, duas, três vezes.
Não sei se alguma vez, no passado, eu já havia reparado em como a letra dessa deliciosa canção country, alegre, ritmada, é tão estupidamente, fantasticamente adolescente. Se alguma vez reparei, tinha esquecido – o que dá no mesmo de nunca haver reparado.
Lennon-McCartney teriam assinado a letra com imensa alegria, na época de suas primeiras composições. Tem um tanto a ver com a letra de “Love me do”, “P.S. I Love You”.
Buddy Holly teria assinado embaixo. Os jovens Roberto e Erasmo também.
“Tell Me That Isn’t True” tem o frescor, a inocência adolescente das coisas da Jovem Guarda, de Sylvie Vartan, de Rita Pavone, de Bobby Darin.
É do mesmo estilo das cançõezinhas juvenis criadas pelo casal Felice e Boudelaux Bryant, os autores de várias das canções que os Everly Brothers emplacaram no topo das paradas de sucesso quando eu era garoto, como “All I have to do is dream” e “Bye, bye, love”.
Me meto a fazer uma tradução, absolutamente livre.
Tenho ouvido boatos de tudo quanto é lugar
Dizem que você está querendo me abandonar.
Tudo o que eu gostaria é que você dissesse que não é verdade.
Dizem que viram você com um outro cara,
Que ele é alto, moreno e boa-pinta, e você segurava a mão dele.
Querida, conto com você para me dizer que não é verdade.
Saber que outro cara está te abraçando
Me machuca inteiro. Não é certo.
Todas essas coisas horrorosas que tenho ouvido,
Não quero acreditar nelas, tudo o que quero é a sua palavra.
Então, querida, é melhor você aparecer
E me dizer que não é verdade.
***
Seria delicioso se não fosse genial.
É verdade que há aí uma suave mistura de gêneros.
Até o início dos anos 1960, os gêneros musicais americanos eram extremamente distintos, separados, apartheizados, da mesma maneira como os brancos eram separados, apartheizados dos negros, em especial no Sul. Até os anos 1950, havia platéias diferentes para cada tipo de música – audiências brancas não se misturavam com audiências negras. Mesmo nos anos 1960, quando se lutava pelo fim do apartheid que não tinha esse nome mas era tão segregacionista quanto o regime sul-africano, havia paradas de sucesso para cada tipo de música.
E então esse tipo de letra adolescente cabia no pop e cabia no rock’n’roll – porque o rock’n’roll começou muito adolescente, com temas adolescentes, exatamente que nem os da Jovem Guarda, o popzinho francês de Sylvie Vartan, o italiano de Rita Pavone, etc, etc.
O country era em geral uma coisa um pouco mais adulta – e os temas eram apenas dois: ou o amor que vai bem, eu te amo e sem você eu não existo, ou então a dor de cotovelo. Ah, eu te amava, e você me traiu, e agora sofro como mendigo na chuva.
A rigor, não havia grande diferença entre os temas do country e os temas da Grande Canção Americana. As duas coisas, embora tão distantes uma da outra, falavam sempre dos mesmos dois assuntos: ou o amor que vai bem, eu te amo e sem você eu não existo, ou então a dor de cotovelo, ah, eu te amava, e você me traiu, e agora sofro como um mendigo na chuva.
A única diferença era que o country usava palavras e imagens bem menos sofisticadas. A Grande Música Americana, com letristas escolados e descolados e metropolitanos, usava palavras de mais de quatro sílabas e imagens elegantes: “com o tempo, as Montanhas Rochosas podem cair, Gibraltar pode desvanecer, eles são feitos apenas de barro. Mas nosso amor está aqui para sempre”.
***
Com uma letra inocente como um anjo renascentista, “Tell Me That Isn’t True” misturava estações. Tinha letra de rock’n’roll adolescente com melodia e arranjo country.
O country não costuma ser alegrinho. Em geral é dor de cotovelo, quase fossa maysiana, dolores-duransiana.
I have heard rumors all over town,
They say that you’re planning to put me down.
All I would like you to do, Is tell me that it isn’t true.
Sim, sem dúvida Buddy Holly teria se orgulhado de escrever essa coisa juvenil. A rigor, a rigor, creio que os jovens Lennon e McCartney de 1962, já então e desde sempre fãs de Buddy Holly, não teriam ainda cancha para escrever esses versos tão adolescentes porém tão bem construídos.
Mas os jovens Lennon e McCartney eram extremamente geniais, e cresciam velozmente. Apenas três anos mais tarde, em Rubber Soul, já estavam fazendo letras extremamente mais complexas do que “de mim, para você”.
Os jovens Lennon e McCartney, especialmente o primeiro, estavam tentando seguir a trilha aberta – ou, no mínimo, mostrada que estava aberta – por Bob Dylan.
É estranho e fascinante pensar nisso. Em especial a partir de Rubber Soul, os Beatles foram óbvia, claramente influenciados por Dylan. Estavam escrevendo letras cada vez mais complexas, mais adultas, mais sérias.
Quando Dylan escreveu e gravou a nada séria, adolescente “Tell Me That Isn’t True”, em 1969, fazia um tremendo esforço para se distanciar da persona que em parte ele havia inventado e que o mundo havia criado para ele.
Foram necessários apenas sete discos – do primeiro, Bob Dylan, de 1962, que não vendeu quase nada, até Blonde on Bonde, de 1966, o primeiro álbum duplo jamais lançado, se eu não estiver muito enganado – para que boa parte do mundo visse Dylan como um profeta.
Aí ele teve um gravíssimo acidente de moto, quase morreu, e mudou.
Dedicou os anos seguintes a tentar provar que não era profeta coisa nenhuma.
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Em seus primeiros sete discos, Dylan surpreendeu o mundo (ou, no mínimo, o mundo que prestava atenção, o mundo que importa) como um letrista genial, superdotado. Fez os hinos de toda uma geração – “Blowin’ in the Wind”, “The times they are a-changin’”. Fez canções de amor de uma beleza que nunca antes havia sido vista. Fez narrativas densas, elaboradas, surrealistas, fellinianas, psicodélicas, imensas, intermináveis.
E aí, depois de tudo isso, apareceu muito propositalmente com canções como essa “Tell Me That Isn’t True” – uma letrinha boba, adolescente.
Mais ou menos como se, depois de ter feito “Detalhes”, Roberto e Erasmo aparecesse com “Pega Ladrão”.
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O disco em que está “Tell Me That Isn’t True”, Nashville Skyline, foi gravado, como já indica o título, em Nashville, a capital do country, onde estão os estúdios e os músicos do country.
Nashville Skyline – hoje parece óbvio – foi feito para distanciar Dylan de Blonde on Blonde, o álbum mais completamente zuretão do rapaz; se você ouvir Blonde on Blonde hoje, caretão de tudo, sem sequer cigarro que paga IPI e cerveja, você viaja longe, Dude.
Mas era ainda mais. Com Nashville Skyline, Dylan queria se distanciar de todo o passado – não queria parecer folk, não queria parecer defensor dos direitos humanos, não queria sobretudo parecer o Grande Profeta dos Sessenta, não queria parecer chapado, não queria parecer coisa alguma. Queria ser só um cantor, que eventualmente poderia parecer country.
Por isso a escolha por gravar em Nashville.
Por isso a foto da capa – um rapagão de barbicha com chapéu com a maior cara de cantor de country.
Por isso ter convidado mestre Johnny Cash para dividir com ele os vocais em “North Country Blues”, que ele mesmo já havia gravado em seu segundo disco, o primeiro autoral, The Freewheelin’ Bob Dylan, de 1963.
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Tudo, absolutamente tudo na vida tem que ser visto dentro do contexto.
Os mais jovens teriam alguma dificuldade para entender isso, mas Dylan não era nada em 1961, quando ele chegou a Nova York. Joan Baez já era a grande rainha da folk music.
Johnny Cash era quase o Noel Rosa, o Dorival Caymmi, o Luiz Gonzaga da música americana, quando Dylan apareceu.
Ter Johnny Cash fazendo dueto no disco do cara de 1969 era uma honra gigantesca. Mesmo que o cara já tivesse, àquela época, um número maior de fãs que mesmo o grande Man in the Black Suit.
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Nashville Skyline deveria ser entendido hoje (e é, de fato, por muita gente) como um gigantesco esforço de Dylan para se distanciar do que o mundo queria que ele fosse.
Ele iria se esforçar ainda mais no disco seguinte, Self Portrait.
Escreveria com todas as letras no seu livro Chronicles, Volume One. Cito de cabeça, não ipsis litteris: “Eu queria fazer tudo diferente do que se esperava de mim”.
Ipsis litteris, ele escreveria, numa canção desesperada de 1974, “Wedding Song”, do disco Planet Waves, na época de sua separação da mulher, Sara: “It’s never been my duty to remake the world at large / Nor is it my intention to sound a battle charge”.
Nunca foi meu dever refazer inteiramente o mundo, nem é minha intenção tocar a canção para comandar o ataque.
Nashville Skyline e Self Portrait são, entre todos os muitíssimos discos de Dylan, alguns dos que mais gosto de escutar.
Só para lembrar, rapidinho (este texto já ficou grande demais): Nashville Skyline abre com o dueto Dylan-Cash em “Girl From the North Country”. Depois tem uma faixa instrumental, “Nasville Skyline Rag”. “To Be Alone with you”, um country alegrinho. “I threw it all away”. “Peggy Day” – uma brincadeirinha, love to spend the night with Peggy Day.
O lado 2 do LP começava com “Lay Lady Lay”, depois vinha “One More Night”, e em seguida “Tell Me It Isn’t True”. Depois tinha “Country Pie”, outra iletrada, para terminar com “Tonight I’ll be staying here with you”.
Meu Deus do céu e também da terra, que disco!
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Ficou para sempre na minha cabeça que “I threw it all away” tinha a ver com o estilo de George Harrison. Muito seguramente Ezequiel Neves escreveu isso, numa de suas críticas de música no Jornal da Tarde que eu lia como um xiita lê o Corão. Acho que tem mesmo a ver com o jeitão de George, essa confissão do sujeito que uma vez teve montanhas na palma da mão, com rios que passavam entre elas todos os dias – mas que devia estar louco, porque jogou tudo aquilo fora.
É uma das mais belas canções de Dylan, entre todas as sei lá quantas centenas.
O fantástico é que, em 1969, não dava para saber que Dylan e George iriam ser parceiros no primeiro disco deste último após o fim dos Beatles, All Things Must Pass, depois se reuniriam no Concert for Bangladesh, e bem mais tarde, nos anos 1980, iriam se divertir juntos, como membros dos Travelling Wilburys, junto com Roy Orbinson, Tom Petty e Jeff Lyne.
Zeca Zagger sacou a proximidade, a parceria, antes mesmo de Dylan e George.
E então Nashville Skyline fecha com “Tonight I’ll be staying here with you”.
Mary e eu costumamos sempre brincar que não seria possível fazer um disco de 60 minutos só de músicas alegres de Dylan.
Bobagem.
Um disco das melhores canções alegres – não problemáticas, não sérias demais, não pesadas, e sim gostosas, pra cima, quase mesmo dançantes – deste ser de outro planeta que veio nos visitar poderia perfeitamente começar com “Tonight I’ll be staying here with you”. Teria necessariamente que incluir “I’ll be your baby tonight”, que encerra o disco de 1967, John Wesley Harding, o disco anterior a este Nashville Skyline, lançado em janeiro de 1968. E, é claro, teria que ter “Tell Me That It Isn’t True”.
Abril de 2013
Tell Me That It Isn’t True
Bob Dylan
I have heard rumors all over town,
They say that you’re planning to put me down.
All I would like you to do, Is tell me that it isn’t true.
They say that you’ve been seen with some other man,
That he’s tall, dark and handsome, and you’re holding his hand.
Darlin’, I’m a-countin’ on you,
Tell me that it isn’t true.
To know that some other man is holdin’ you tight,
It hurts me all over, it doesn’t seem right.
All of those awful things that I have heard,
I don’t want to believe them, all I want is your word.
So darlin’, you better come through,
Tell me that it isn’t true.
All of those awful things that I have heard,
I don’t want to believe them, all I want is your word.
So darlin’, I’m countin’ on you,
Tell me that it isn’t true.
Dylan surpreendeu o mundo (ou, no mínimo, o mundo que prestava atenção, o mundo que importa.
Que mundo seria este? Que foi feito deste mundo? O profeta Dylan acertou? O mundo em que vivemos hoje importa? Dylan morreu ou morreram suas profecias? Aconteceu com Dylan o mesmo que aconteceu a Roberto Carlos? Com McCartney? Lennon morreu salvou-se de uma parceira melosa,como essa “Tell Me That Isn’t True” – uma letrinha boba, adolescente.
Precisamos de novos Dylans.
Sérgio, belo texto!
Semana passada voltava de um plantão cansativo, parado no trânsito caótico de São Paulo e o ipod conectado no som do carro, no modo aleatório, tocou Tonight Ill be staying here with you, que eu não escutava já a algum tempo. Mesmo no meio do engarrafamento e cansado, botei a musica pra repetir umas três vezes e com um sorriso no rosto.
E esse álbum inteiro é interessantíssimo. No momento em que Dylan dominava a cena artística, ditava os rumos da música e era uma das personalidades mais “cool” do meio – perto dele os Beatles eram coxinhas – ele resolve lançar, depois de blonde on blonde (!!), um álbum country ou quase isso.
Há algum tempo, depois de um término com minha ex-namorada, I threw it all away era a música que se repetia no cd player.
Como você bem disse, o cara não é humano, é um ET. Um humano só não conseguiria produzir tanta coisa desse nível de qualidade.
Abraço,
Rafael