O que é uma sala de cinema? Nos anos 50, um crítico francês, num sobressalto cognitivo, perguntava o que era o cinema. Não me vão ouvir dizer, com a certeza ontológica de um Medina Carreira, que era a pergunta errada. Mas se quisermos saber o que é o cinema, temos de saber que a sala, a sala de mil lugares, a sala escura, amniótica, é o seu Xanadu.
A sala de cinema é um antro de vício. Não há nada de funcional na sala de cinema. E já estou a mentir: devia ter dito não havia. Corrijo, não havia nada de funcional na grande sala de cinema. Hoje, a sala de cinema acabou.
Palácio de mistérios, a sala de cinema tresandava a pecado. A sala de cinema era heidggeriana, era o Ser em si: estarmos na sala fazia-nos autores do filme que se exibia. Éramos, mais hamletianos do que Shakespeare, o ser para quem o ser era uma questão. A experiência da sala era mais do que o filme. É por isso que os fundamentalistas cinéfilos nunca tiveram razão: um filme pode ver-se cinco minutos ou vinte depois de ter começado. Os surrealistas iam de sala em sala, delirando com meias-horas de filmes diferentes.
Nesses esquecidos anos de inocência do cinema, os projeccionistas aceleravam a velocidade do filme. Via-se Chaplin, no The Kid, ó pernas para que vos quero, a fugir da polícia a umas 32 imagens por segundo, mas logo que ele, enternecido, contemplava o garoto que salvara, o olhar passava às 16 imagens que fizeram a glória do mudo. Nem falo nos beijos vagabundos: beijou Edna Purviance a 16 imagens, mas os beijos mais felizes, a 24, deu-os a Paulette Goddard. Patética nota pessoal: quem me dera ter sido mudo para ter também beijado a 16 imagens por segundo.
Os projeccionistas é que sabiam. Não imaginam as bobinas que ficaram na lata para o filme demorar muito menos sem que os espectadores se ralassem um charuto. O que contava era a cósmica escuridão da sala. Estavam ali, mil, duas mil pessoas – sim, falo da verdadeira sala de cinema – e cada uma sozinha, num negrume bíblico que aflitos raios de luz assassinam e redimem. Cada uma das mil pessoas, cadeira a cadeira, se apaixonava pelas figuras que a luz de um projector desenhava no ecrã. Estremecia-se a um grande-plano do tamanho de um Adamastor. Dizia-se que era a boca de Joan Crawford ou Deborah Kerr ou o lugar ao sol dos olhos de Elizabeth Taylor.
Era o amor como nunca mais voltará a existir. Mil pessoas em êxtase – vergonhosamente sexual – umas ao lado das outras, cada uma guardando para si o pecado que a luz e as sombras lhes punha nos olhos e lhes animava o baixo-ventre.
Mil, mesmo duas mil pessoas, lado a lado de se roçarem braços, mergulhadas uma a uma em inconfessáveis prazeres. Na espessa escuridão de uma sala, uma orgia de silêncio: nenhum século amou tanto a escuridão como o século XX.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Manuel sensacional!
Sabe muito de cinema, certamente ainda frequenta as poucas salas de cinema que ainda existem.
A sétima arte, como chamam o cinema, é resgatada aqui, em tempos digitais e produções para telinha.
Miltinho, quem nos tira a sala escura, tira-nos tudo!