Do calor das cinco da tarde veio um riso de criança. Estou em Lisboa e a alegria irresponsável de uma gargalhada infantil interrompe-me a siesta andaluza. Julgava que já não havia crianças nas ruas de Portugal. Quando é que as crianças desapareceram das nossas ruas? Haverá um Robert Mitchum, cínico e perverso, que as persegue ao longo do Tejo, como se o Tejo fosse o Ohio River do mais belo e infame dos filmes, chamado The Night of the Hunter?
Ninguém sabe fazer filmes sobre crianças. Isto é, os alemães sabem. É verdade que Manoel de Oliveira fez um. E é verdade que Aniki-Bobó, que agora se papa como refresco de matinée, visto com olhos de ver, é um filme pejado da inocente crueldade que encantaria um velho produtor germânico. Mas o Oliveira de Aniki-Bobó é uma bela cabeça de cinema mudo, pingo de Dziga Vertov numa mão-cheia de expressionismo, em tempos de pai tirano. É o grande cineasta de um Portugal que, se existiu, já não existe.
Os alemães fazem os melhores – os únicos – filmes de assustar crianças. Fritz Lang fez o M, em que um torturado e ofídio Peter Lorre, pedófilo acabado, assobia uma canção de Grieg antes de assaltar as suas pequenas vítimas. Com um assobio assalta, com um assobio se desgraça. É um tão odioso assassino que os assassinos, ladrões, a escumalha mais viscosa do mundo, todos têm um rebate de nobreza: unem-se para o prender, condenar e matar.
O assobio de M atravessa o Atlântico e transforma-se numa canção de embalar, canção de medos e sonhos, em The Night of the Hunter. Produzido por Hollywood, único filme dirigido pelo actor inglês Charles Laughton, dir-me-ão que não é um filme alemão. Dizem isso só para me contrariar e porque não adivinham o que eu sou de teimoso como burro.
The Night of the Hunter é o mais alemão dos filmes. A luz, os enquadramentos, os ambientes, os contrastes são a cara chapada do Expressionismo berlinense. Durante duas décadas, os Lang, os Murnau, os Lubitsch, os Dieterle, ou seja, a nata do cinema alemão, iam à praia a Malibu, tomavam o dry-martini perfeito no Musso & Frank, viviam em Sunset. Hollywood banhou-se nas mesmas águas, bebeu do mesmo copo.
Em The Night of the Hunter, Robert Mitchum persegue um miúdo e uma miúda, mais irmãos do que Hensel e Gretel. Quer roubar-lhes o dinheiro que o pai lhes deixou. Persegue-os em caves escuras, em celeiros de lua vaga, em florestas de sombras. É alemão o Ohio River que descem: tem margens de irmãos Grimm, povoadas de aranhas e rãs, coelhos, tartarugas e mochos. Lição alemã: a noite mais escura, a mais arrepiante das noites é a noite do caçador.
Eram cinco da tarde e um riso menino acordou-me da minha siesta andaluza. Há crianças nas ruas de Lisboa. Talvez o terrível Mitchum tenha deixado de bater as margens do Tejo.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
The Night of the Hunter no Brasil teve o título de Mensageiro do Diabo.
Manuel, este filme é um terror! As águas do rio me meteram medo e até hoje me causam a mesma sensação. Lembrar de miúdos com este filme é realmente aterrador. Espero que as crianças de Portugal percorram o Tejo com mais bela fotografia.
Miltinho, claro que é um terror. Perfeito. Sublime. Por ser um filme. Se fosse na vida, seria macabro e sórdido. Por isso eu digo que o cinema nos dá o que a vida tira.