Quando Vitor Gaspar ou Passos Coelho anunciam novas medidas, naquele hiato que há entre a psicologia e a acção, será possível descobrirmos que tremem como varas verdes? Roberto Rossellini, que devia tremer como varas verdes à frente de Ingrid Bergman, fez desse instante incerto a inspiração de parte do seu cinema.
Nos filmes históricos, um pretenso sentido pedagógico autorizou-o a invadir a intimidade dos heróis, seja a de São Francisco em Francesco, giullare di Dio ou a do Rei Sol em La prise du pouvoir par Louis XIV.
Rossellini jura que aprendeu com Napoleão. Aconteceu no cerco de Toulon, em que Napoleão entrou capitão e saiu general. Antes do assalto à posição inimiga, o corso tremia como uma vara. Um jovem oficial espantou-se: “Mas está a tremer de medo?” Napoleão, que acabaria por ser ferido à baioneta, respondeu-lhe: “Se tivesses o medo que eu tenho, já tinhas fugido daqui a sete pés.”
Francesco e Louis XIV são filmes sobre esse momento em que o tímido inventa, contra a realidade, as forças que não tem, como se a fraqueza lhe inspirasse um plano. Quem esperaria de um rei destinado à caça, aos espectáculos da corte, aos favores das cortesãs, que pudesse um dia dizer “O Estado sou eu!”
O tímido só sobrevive encenando e La prise du pouvoir é, da primeira à última imagem, o filme de uma encenação. Louis XIV encena a forma como recebe o poder do cardeal Mazarin que antes dele o detinha, e encena a intriga e a exemplar prisão de Fouquet, seu adversário. O rei encena a vida íntima com a rainha e encena as festas. Tudo se encena: a música e as amantes do rei, as carnes e o vinho do rei.
Tudo se mostra para que o brilho do espectáculo oculte o mais íntimo do rosto. Rossellini, no fim do filme, põe na mão do rei um livro de La Rochefoucauld e ele lê: “Nem o sol, nem a morte se podem olhar de frente…” O sol era ele, o rei, aquele de quem, tudo se vendo, não se via afinal a verdadeira face.
Rossellini não filmou – que pena! – o mais patético dos episódios. O rei teve uma fístula anal. Dores insuportáveis que não lhe permitiam caçar, rir-se, reinar. Louis XIV não temeu encenar a doença e a cura. Expôs, aos físicos e aos eleitos da corte, o esplendor do seu posterior. Um dos médicos teve permissão para introduzir o investigativo indicador no recôndito dead end. Só cortando o abcesso, coisa jamais feita, disseram. Faça-se, ordenou o rei.
Os físicos inventaram instrumentos e, numa antecipação do Estado Social, recolheram pobres e presos com fístula, operando à força uma centena. A ciência dava um passo. Podia agora invadir a porta de serviço real e retalhar. Louis XIV, com a corte a assistir, sem anestesia, foi estóico e não soltou nem um régio ai. Muito povo ficou com o rabo a arder, mas estava salvo “le cul du roi”.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
O Rei Sol, o Rei absoluto, de bruços, sendo sangrado, penetrado, operado. A cena pitoresca talvez fosse melhor retratada por Mario Monicelli.
O Sr. Miltinho bota palavras em tudo o que se escreve aqui, é obra!
O Sérgio há uns tempos disse-lhe para ele ir dormir. Pos sim!
Miltinho, o Moniccelli de I soliti Ignotti é um grande realizador. Bem pensado.