Faz dois meses que estou aprendendo na prática aquela verdade que tantos milhões de pessoas já haviam experimentando antes de mim, aquele axioma: avô é pai duas vezes.
É bastante fascinante isso, experimentar na prática, na carne, uma verdade que a gente sabe que é verdade, mas que só sabe mesmo como é quando acontece.
As verdades, a gente só entende de fato quando as vivencia.
Esse é um problema danado quando a gente cria filho, e deve ser também quando a gente é professor e tenta ensinar as coisas para os alunos. Dizemos para os filhos (e para os alunos) as coisas em que acreditamos, as coisas que achamos certas. Mas por que raios eles vão acreditar no que dizemos? Eles ainda não vivenciaram aquilo.
Passar valores é muito mais difícil do que passar DNA. DNA a gente passa sem perceber, sem fazer esforço algum. “A menudo los hijos se nos parecen, e asi nos dan la primeira satisfacction”, diz, brilhantemente, o catalão Juan Manuel Serrat.
Minha filha, por exemplo, não se parece fisicamente comigo, graças ao bom Deus: seu rosto se parece com o da mãe, lindíssimo. Mas os dedos dela são idênticos aos meus, e isso me dá grande satisfação: são a prova escarrada de que ela é minha filha, tem meu sangue.
No entanto, muitas vezes o jeito com que ela raciocina, com que ela reage aos fatos, é extremamente parecido com o meu jeito. Chega a ser chocante como ela em muitas coisas se parece comigo.
A vida é toda loteria, mas Suely e eu ganhamos a sorte grande, e nossa filha tem todos os valores bons, corretos. Não dá para saber se conseguimos passar para ela os valores, ou se ela os aprendeu com o mundo, mas é muito mais importante do que ela ser linda como a mãe e ter os dedos idênticos aos do pai o fato de ela ser uma boa pessoa, com uma escala de valores admirável.
Bem. Acho que tergiversei.
Mas este texto está com jeito de ser uma grande tergiversação, um imenso viajandão mesmo, e então vamos em frente.
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Eu tinha 20 anos (e Suely 17) quando Cat Stevens lançou Tea for the Tillerman, o disco que tem “Father and Son”. Faz mais de 40 anos que ouço “Father and Son”, e cada vez fico mais impressionado com a beleza extraordinária da letra escrita por aquele garotão de fina estampa só dois anos mais velho do que eu. (Como é possível que aquele cara tenha escrito a letra dessa música com apenas 22 anos de idade? Ele deve mesmo ser um ET, um MIB.)
“Father and Son”, como se sabe, é um diálogo entre pai e filho. A rigor, é um diálogo de surdos-mudos – um não ouve o que o outro diz. Estão tão longe um do outro que um não consegue compreender nada do que outro diz.
Há duas histórias de uma amiga minha de que jamais vou esquecer. A primeira: eu traduzi para ela a letra da música (éramos muito, muito jovens), e ela então disse alguma coisa assim: “Nossa, se meu pai conversasse assim comigo, seria uma maravilha”.
O pai da minha amiga era ainda pior do que o pai de “Father and Son”: ele sequer conversava com a filha.
A segunda história: minha filha, bebezinho ainda, estava deitada na nossa cama, Suely trocando sua fralda. Diante dela, no nosso quarto, havia uma grande estante de livros. Essa minha amiga disse: “Ela deve estar pensando assim: nossa, será que eu vou ter que ler tudo isso?”
Minha filha, aquela criaturinha de quem Suely trocava fralda diante da estante de livros, é uma leitora voraz. Ela me surpreende com a velocidade e com a seriedade com que lê. Acho que basta dizer que leu Anna Karênina antes de mim.
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Marina passou dois dias aqui em casa. Minha filha estava se mudando para o apartamento novo, e veio para cá com Marina e uma imensidade de tralhas na véspera da mudança, para fugir da zorra. Na quarta, o povo da transportadora foi ao apartamento velho embalar as coisas – duzentos mil livros, uma quantidade absurda de papéis inclusive –, e minha filha trouxe Marina para cá, para não conviverem com a loucura da mudança.
Na quinta, foi feita a mudança propriamente dita.
Na sexta, mudança feita, trocentas caixas no apartamento novo, mas o quarto de Marina já devidamente organizado, filha e neta foram para lá, depois de dois dias aqui.
Senti a casa vazia.
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Nos dois dias em que estiveram aqui, filha e neta ficaram no quarto que foi o da filha, até que ela, onze anos atrás, se casou. Ao longo deste tempo, botamos uma estante que ocupa uma parede inteira, diante da cama que era dela e hoje é de hóspedes.
Quando minha filha trocava a fralda de Marina, os olhos de Marina se voltavam para a estante. As diferentes cores das capas dos livros devem mesmo chamar a atenção de um bebê.
Foi impossível não lembrar: a fralda da minha filha era trocada diante de uma grande estante de livros. A fralda da minha neta foi trocada diante de uma grande estante de livros.
Marina vai ler tudo aquilo, como a mãe leu boa parte dos livros dos pais, e muito mais?
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Poucos dias atrás, eu tinha revisto o DVD em que o ex-Cat Stevens, hoje Yusuf, canta “Father and Son”. É um show recente, de 2011, 2012, sei lá. O mesmo sujeito que havia composto e cantado “Father and Son” quando tinha 22 anos cantava agora, aos 60 e tantos, a mesma canção.
Fiquei pensando nessa coisa doida: hoje ele vê a vida como pai, como avô. E canta a canção que escreveu quando era um filho que contestava toda a visão de mundo do pai. Uma contestação violenta, forte – mas que a minha amiga, quando muito jovem, achava que era um diálogo que ela gostaria de ter tido com o pai.
Marina tem pai amantíssimo, mãe amantíssima.
Tem avô que baba, avó de coração que baba, avó paterna que baba também, do jeito dela, bisavós que babam, tios, tios-avós e primos que babam.
Faltam o avô paterno e a avó materna. Destes ela não vai sentir falta – só nós, os adultos, sentimos, e sentimos muito.
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Então: avô é pai duas vezes.
Verdade. Verdade.
Quando minha filha se viu na casa nova, no quarto novinho da filha dela, ficou feliz demais de todas as contas.
Como não babar por aquele tantinho de gente que faz minha filha experimentar uma felicidade que nunca tinha tido?
Estou aqui aprendendo essa verdade universal de que avô é pai duas vezes.
Mas a verdade dos fatos é que a existência da neta me faz amar a filha ainda mais que antes.
18 de maio de 2013
Para quem não se lembra bem, eis aí a letra de “Father and Son“, de Cat Stevens:
(O pai: )
It’s not time to make a change
Just relax, take it easy
You’re still young, that’s your fault
There’s so much you have to know
Find a girl, settle down
If you want, you can marry
Look at me, I am old
But I’m happy
I was once like you are now
And I know that it’s not easy
To be calm when you’ve found
Something going on
But take your time, think a lot
I think of everything you’ve got
For you will still be here tomorrow
But your dreams may not
(O filho: )
How can I try to explain
When I do he turns away again
And it’s always been the same
Same old story
From the moment I could talk
I was ordered to listen
Now there’s a way and I know
That I have to go away
I know I have to go
(O pai: )
It’s not time to make a change
Just sit down and take it slowly
You’re still young that’s your fault
There’s so much you have to go through
Find a girl, settle down
If you want, you can marry
Look at me, I am old
But I’m happy
(O filho: )
All the times that I’ve cried
Keeping all the things I knew inside
And it’s hard, but it’s harder
To ignore it
If they were right I’d agree
But it’s them they know, not me
Now there’s a way and I know
That i have to go away
I know I have to go
***
Nara Leão gravou uma versão em português da canção, feita pelo seu então marido, Cacá Diegues. Eis aí:
É tão cedo pra partir,
Devagar, não se apresse
Nessa idade você tem
Tanta coisa que aprender
Ache a moça dos seus sonhos
Monte um lar e um negócio
Como eu fiz e eu sou velho
Mas feliz
Eu já fui como você
E sei bem que é da idade
Se iludir com o sonho de um mundo irreal
Mas pense um pouco, no futuro
Pense em tudo que hoje tem
Pois o sonho se acaba
E você vai ficar só
Como posso lhe explicar
Quando eu tento ele não quer ouvir
Volta mesma, é sempre a mesma
Velha história
Desde o dia que aprendi a falar
Só faço ouvir vocês
Mas agora descobri
Que há um caminho e devo ir
Adeus, eu vou partir
(Adeus, adeus, adeus…
Eu sei que tenho que decidir sozinho…)
É tão cedo pra partir
Sente um pouco e reflita
Nessa idade você tem
Tanta coisa a realizar
Ache a moça dos seus sonhos
Monte um lar e um negócio
Como eu fiz e eu sou velho
Mas feliz
(Não vá, não vá…
Você vai ter que decidir sozinho)
Sofri tanto pra guardar
Sempre em mim tudo em que acreditei
Me doia, mas dói mas se enganar
Vocês pensam que me entende
Mas é sempre de vocês, que vocês falam
Mas agora descobri
Que há um caminho e devo ir
Adeus, eu vou partir
Uma neta traz enxurradas.
Águas nos olhos.
Água na boca.
Marina careca fosse.
E se barba tivesse.
Me atreveria dizer
Parece com o avô.
Ela parece mesmo com o avô babão, Miltinho. E mais: também achei a filha parecida com o pai, apesar de bonita, rs,rs.
A menininha é linda, a moça é bonita e o avô é um charme!
Ou seja Trio do Brilho, como diria a delícia de avó que a Marina recebeu.
Acabo de ver um vídeo da festa dos 75 anos de Sinatra, em 1990. De repente, ele lembra os apelidos que teve na vida: Bones, No Hips, The Voice, Chairman of the Board, Ol’ Blue Eyes, mas confessa que nenhum lhe deu tanta alegria quanto o que agora usava: Grandpa.
Pois é. Lá como cá, ser avó é o quente!
Desculpem o acento errado: ser AVÔ é o quente, disse Frank Sinatra!
Não mereço tanto, Maria Helena! Mas agradeço de coração!
Miltinho e Luiz Carlos, agradeço a vocês também!
Grande abraço.
Sérgio
Sergio, ainda que tardiamente, quero dizer que sua felicidade e seu encanto pela doce Marina são comoventes. Faz bem a gente encontrar para ler um texto que nos traz paz.
A propósito: quem fez a belíssima foto em P&B?
Valdir, o autor da foto em P&B é este humilde escriba que vos fala…
Abração.
Sérgio