Nenhuma cerveja nos leva ao inferno. Pior, toda a cerveja é uma suspensão da realidade. Em guerra é um pedido de tréguas. No amor, a câmara de descompressão antes da antropofagia erótica.
Em Mingo Junction, nas lindas berças a que os americanos chamam Ohio, Bob De Niro tem nos braços Meryl Streep. Dançam esse prodígio de mobilidade horizontal que tem por título “Can’t Take My Eyes Off Of You”. Ela é a namorada de Christopher Walken, o melhor amigo dele. Os corpos de De Niro e Streep enleiam-se, colam-se um bocadinho nem um fio de ar entre eles, febre a mais. De Niro, que nesse The Deer Hunter, é homem de “one shot”, um tiro só, oscila entre o ânimo perpassante que o acomete e a lealdade ao amigo. Disfarça, embaraça-se, inclina-se para ela, convida-a para uma cerveja.
“I’ll get you a Rolling Rock, é uma boa cerveja, a melhor que há”, diz De Niro ao vestido rosa de Meryl Streep e, num eflúvio erótico, arrasta-a do salão do casamento para o bar. Streep, com o tímido sorriso de mulher que sabe o que quer, mas se defende de acessos de paixão, De Niro de olhos e cabeça a derramarem-se no colo dela, a Rolling Rock já na mão, é quando entra um inconvidado boina verde. Sinistro, silencioso e sub-reptício. Traz na farda um prenúncio de Vietnam, uma cerveja antes do inferno.
Bebi a primeira cerveja em Luanda. Talvez Cuca, talvez Nocal. “Se queres ajudar Portugal, bebe Nocal; se preferes ajudar a UPA, bebe Cuca”, era um slogan de boca pequena e mesquinha, raivoso da angolanidade do empresário português Manuel Vinhas, dono da Cuca, que inventou o compromisso social antes de o marketing se lembrar dele.
Lembro-me eu da desenrascada escassez dos primeiros tempos de independência: foi na lendária Cervejaria Biker, e a cerveja só já se servia a quem pedisse o imutável prato do dia, arroz branco com peixe-espada, espécie piscícola que o metafórico povo de Luanda acarinhou com o nickname de “cinturão das FAPLA”, acrónimo das forças armadas que se juravam libertadoras. Um prato do dia, quatro finos, que vinham por junto com o peixe frito, para evitar makas – homéricos conflitos – porque mesmo em fraternidade revolucionária há sempre uns cazucuteiros prontos a semear a cizânia nos campos de alvo trigo ou moreno centeio.
Não conheço maior cazucuteiro – confusionista-mor – do que Dennis Hopper no Blue Velvet, do oblíquo e supliciado Lynch. Lembrem-se da cena: Hopper tem Kyle MacLachlan preso pelo cachaço, Isabella Rossellini a um palmo da sua mão direita, e vão entrar num bar. Kyle não está nos seus dias de sorte. Pede uma Heineken. “Fuck that shit”, rebenta Hopper, e nunca ninguém mandou uma cerveja para tão longe, ao mesmo tempo que hiperboliza a Pabst Blue Ribbon, sua favorita.
Nenhuma cerveja nos leva ao inferno, nenhuma nos salva dele.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
The Deer Hunter no Brasil teve o título de O Franco Atirador. Blue Velvet, claro, é Veludo Azul.
Confesso que não percebi nada do que está escrito acima e nem sequer consigo imaginar o que é que o Sr. Fonseca queria dizer, ou se queria mesmo dizer alguma coisa.
Tenho pena de não gostar nada deste escritos, é um compatriota, mas é assim mesmo.
Parece-me, e peço desculpa se estou errado, que o Sr. Fonseca escreve sobretudo para si próprio.
Ó Manuel sei que não estás a escrever obviedades. Sei que és um amante saudosista de velhos filmes. Filmes que foram vistos por muitas pessoas mas que se você consegue rever e refazer. Por este motivo seus escritos são tão pessoais e desagradam alhures. Eu daqui da terra onde jogam futebol e toma-se cerveja em tempos de paz.Vou tentar rever “The Deer Hunter” e “Blue Velvet” desta vez com olhos de Manuel.
Escreva seus textos para nós, sem o seu ego-cervejeiro. Quem sabe um dia, em Lisboa, Luanda, Rio ou Teresópolis possamos beber uma gostosa Bohemia (desde 1853)ao lado do Sérgio (profundo conhecedor e não menos bebedor) e do patrício José Luiz?
Corrigindo E.Tempo: José Luis
Meu Caro José Luis,
As minhas crónicas querem ser uma boa conversa fácil de entender. Quando não atingem esse objectivo é exclusiva culpa minha.
Miltinho, veja essas cenas com as cervejas nos dois filmes que vai gostar. E ainda bebemos uma boa “bejeca” (como aqui se chama) um dia destes.
Um abraço aos dois
Caro Manuel S. Fonseca,
Eu tenho lido as suas crónicas e bem gostaria de as entender mas não consigo, tirando algumas raríssimas excepções.
Quando escrevi “escreve sobretudo para si próprio” pensei também no cinema português que muitas vezes padece desse mesmo mal.
Como lhe disse, caro José Luis, se o meu amigo não entende as crónicas é, sem dúvida, por que eu não me consigo fazer entender. É um problema meu.
Quanto ao paralelo com algum cinema português não creio que seja justo para esse cinema.
Agora, ao contrário do que possa pensar, eu procuro escrever para ser compreendido. Sucede que não nos entendemos, mas também não vejo mal nenhum nisso. Um abraço