Vida de viajante

Ando cansado de tanto aeroporto, estrada para o aeroporto, viagens de quarenta e cinco minutos que, do ponto de partida ao de chegada, nos roubam umas quatro horas. Para levar o enredo no melhor dos mundos gosto, quando vou só, de ler durante o percurso. Aí é que começa o meu problema.

Não faz parte de meu repertório acordar muito cedo. Assim, marco passagens, preferencialmente, para horários vespertinos. Quando saio de casa, já li todos os jornais do dia. Não vou levar comigo um romance ou coisa mais volumosa, o trajeto aéreo é curto normalmente. Então recorro às livrarias do chamado terminal aéreo. Não me iludo mais, é caçar agulha no palheiro. Difícil buscar, naquele mar de livros de autoajuda, de os mais vendidos, os mais procurados e os mais sem graça ( não é preciso abri-los para saber), algo que valha a pena. Aquilo é uma selva em que a boa literatura é exceção.

Mas existe. São os poucos livros de bolso existentes na loja. Outro dia comprei um Machado de Assis que eu nunca lera, Casa Velha, que ele publicara apenas em folhetim de jornal. Se é bom reler o já conhecido, imagine se ver diante de uma novidade. O vôo de ida e volta foi todo machadiano. Não é da fase romântica nem da maturidade, está no meio do caminho.

Na última semana, a mesma procura, agora com um número ainda menor de obras aproveitáveis. Aí eu dou de cara com uma peça escrita por Millôr Fernandes, em 1955, quando tinha 31 anos, Um elefante no caos. Divertida e inteligente, a pequena obra iluminou minha tarde. Finda a leitura, vejo na contracapa a opinião de críticos da época de sua primeira encenação. Opinião escrita ou gravada é um perigo. Van Jafa, no Correio da Manhã, disse que aquilo não era teatro.

Paulo Francis, um jovem que ainda não tinha aprimorado todos os seus defeitos, clamava que Millôr era “um individualista pré-marxista, preso a um sistema ético-familiar”. Um outro crítico dizia que o autor não passava de um reacionário. Não sei se é assim que se deve analisar uma obra de arte, mas nada se pode fazer com os que usam o papel para opinar sobre o que sua percepção não alcança. E a, ainda hoje, crítica Bárbara Heliodora sapecou o que se segue: “ Millôr Fernandes não resiste à tentação de interpretar o Hamlet e volta e meia tenta ser poético ou lírico. Nessas ocasiões, seu fracasso é quase tão completo quanto seu sucesso nos momentos de humor, caindo no óbvio, no formal, mesmo no piegas.”

Gostei muito mais da peça do que dos comentários que, no olhar de hoje, são ridículos. A obra continua de pé, normalmente é assim. O engraçado é que o texto escrito em 1955, anos antes do golpe que instalou o regime militar, foi proibido em 1971, plena era Médici. Comentário de Millôr: “os dons de previsão do autor, ao que parece, deram para criticar as mazelas de um regime que ainda não existia. Ou serão sempre as mesmas?”

Esta crônica foi originalmente publicada no Estado de Minas, em maio de 2012.

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